União Europeia e desporto: concorrência e mercado
SÉRVULO NA IMPRENSA 01 Nov 2017 in Vida Judiciária
Miguel Gorjão-Henriques
Sócio da Sérvulo & Associados, Sociedade de Advogados, S.P., R.L.
Só há concorrência onde há liberdade e, como se sabe, a liberdade contém em si sempre o risco do aniquilamento da concorrência ("paradoxo da liberdade"). Razão que, historicamente, levou o legislador a, entre as liberdades contratual e de concorrência, dizer preferir a segunda (Nogueira Serens), por vezes criminalizando até a infracção a esta.
Pensa-se habitualmente que o desporto é, no essencial, uma área não económica ou, ainda que o seja, o campo privilegiado da auto-regu-lação privada, da intervenção subsidiária dos entes públicos e, sobretudo, da competência dos Estados membros. É certo que o direito da União hoje lhe reconhece uma «função social e educativa» (art. 165.°, n.° 1, do Tratado), limita a sua intervenção harmonizadora e reserva para os Estados membros as medidas legislativas tendentes a assegurar «a equidade e a abertura nas competições desportivas e a cooperação entre os organismos responsáveis pelo desporto» (art. 165.°, n.° 2). Mas esta realidade normativa trazida para o Tratado de Roma pelo Tratado de Lisboa, com quase oito anos, colide com a, só aparentemente contraditória, sujeição integral do desporto, como actividade económica, às liberdades fundamentais do mercado interno ou à política e normas de defesa da concorrência, e também ao direito estadual ou da União Europeia.
Não se ignoram as reservas que têm sido manifestadas à absorção do fenómeno desportivo pelo direito da UE, seja da concorrência ou do mercado interno. As especificidades do sector (v.g. a promoção do desporto como fim de interesse geral, no art. 79.° da nossa Constituição) e a natureza não económica de algumas matérias e situações, i.e., aquelas medidas puramente desportivas, pareciam admitir, como a Comissão Europeia sustentou, que regras genuinamente desportivas não fossem objecto de aplicação das normas de concorrência (Mario Monti, "Governance in Sports", 26-27.2.2001, em Bruxelas). Mas esta visão não prevaleceu.
O desporto organizado e profissional não escapa ao direito da UE nem ao direito da concorrência. A auto-regulação não exclui nem limita a sujeição às normas imperativas de origem europeia (ou nacional). Aceite-se que no desporto, e, em particular, no desporto profissional, os clubes desportivos estão directamente interessados não só na existência de outros clubes, como também na saúde financeira dos concorrentes desportivos, sem a qual o sucesso de uma competição de cariz desportivo ficaria fortemente ameaçado. Enfim, aceite-se o axioma cum grano salis. O sucesso desportivo está intrinsecamente relacionado com o incremento dos resultados económicos e financeiros dos concorrentes. Seja como for, é possível (mas, por vezes, difícil) estabelecer a diferença entre a designada "concorrência desportiva" e a "concorrência económica", o que dificulta a aplicação prática do direito da concorrência ao desporto (cf., Relatório de Helsínquia, 1997).
Mas se em 1999 o Comité das Regiões escreveu que «[o]s clubes desportivos não são empresas e as associações desportivas não são organizações industriais no sentido do direito económico» (O modelo europeu do desporto), esta declaração deve ser em grande medida desconsiderada. Para efeitos do direito da concorrência, os clubes desportivos, enquanto entidades que oferecem bens ou serviços num determinado mercado, independentemente da estrutura jurídica que adoptem, são considerados «empresas». E as federações e confederações e associações são, claramente, associações de empresas (acórdão Frubo, proc. 71/74). E podem também ser empresas (acórdão Scottish Football c. Comissão, proc. T-46/92).
São já numerosas as décadas percorridas desde o momento em que o poderoso Tribunal de Justiça da UE, desde o anneaux no qual nos rege a todos, declarou que o desporto, como actividade económica, está sujeito às liberdades fundamentais do mercado interno (Walrave), que não podem as associações ou federações impor restrições à livre circulação dos trabalhadores (o caso tsunami: Jean-Marc Bosman); que as decisões sobre doping afectam os direitos conferidos pela UE aos desportistas (Meca-Medina); que os agentes são empresas (Piau, repugnando ao velho conceito de empresa/estabelecimento de Orlando de Carvalho); que não se eximem ao direito da concorrência matérias tão díspares como a negociação dos direitos televisivos premium (Ebu/Eurovisão ou Bundesliga ou UEFA Champions League, etc.), a venda de bilhetes em grandes competições (França 1998), a proibição da propriedade múltipla dos clubes (ENIC), as regras de TPO (Third Party Ownership), o financial fair play (SPRL MadM., 2014), a exclusividade na organização de provas (casos FIA/FOA; FIA, de 2011; ou White Star (Campeonato belga), em 2016/2017), as regras de transferências (Balog) ou mesmo os efeitos na UE de práticas em terceiros Estados (cf., os casos Guillermo Canas e Intel, de 2017).
O direito da UE pode intervir perante regras puramente desportivas: a «simples circunstância de uma regra ter carácter puramente desportivo não exclui do âmbito de aplicação do Tratado a pessoa que exerce uma actividade regulada por essa regra ou o organismo que a instituiu. Caso o exercício da actividade deva ser apreciado à luz das disposições do Tratado relativas à concorrência, há que verificar se as regras da actividade emanam de uma empresa [ou associação de empresas], se esta restringe a concorrência ou abusa da sua posição dominante e se essa restrição ou esse abuso afectam o comércio entre Estados membros».
É neste contexto que o velho juízo de que a «organização do futebol está em rota de colisão com várias disposições do Tratado» (Weatherhill, 1989) se manterá actual, ainda que as questões se renovem, como quanto ao financial fair play, por exemplo (Comissão Europeia: 2011), e mesmo que isso repugne aos dirigentes desportivos (recordem-se as palavras de Gianni Infan-tino, sobre as decisões em matéria de anti-doping). Mas a nossa atenção converge ainda para outro instituto, o dos auxílios públicos. Na UE vigora o princípio da incompatibilidade dos auxílios estatais (públicos) com o mercado interno, consagrado para, por um lado, evitar que a concorrência efectiva seja falseada pela concessão de vantagens a certas empresas face aos seus concorrentes e, por outro lado, promover a melhor afectação dos recursos a nível europeu. Clubes de futebol, associações ou federações, ainda que sejam pessoas colectivas privadas, sem fins lucrativos e visando fins de interesse geral, estão sujeitas às normas sobre auxílios públicos (Pavlov e outros).
E assim não é de estranhar que sejam objecto da atenção crescente da Comissão Europeia os financiamentos pela Administração, directos ou indirectos, de investimentos em clubes, cidades desportivas, ou para a realização de grandes competições (o caso do Euro 2016) ou mesmo sobre a afectação dos estádios após as mesmas. Quanto aos clubes, destacaram-se no último ano decisões da Comissão Europeia relativas aos auxílios fiscais a diversos clubes de futebol espanhol (Athletic Club Bilbao, Club Atlético Osasuna, FC Barcelona e Real Madrid CF), em que esta ordenou a recuperação dos auxílios aos referidos clubes. Mas cabe aqui um papel especial aos tribunais e aos advogados. Só são proibidos porque incompatíveis os auxílios públicos que preencham todos os pressupostos do art. 107.°, n.° 1, do TFUE, a saber: (i) financiamento por meio de recursos públicos, seja por prestação positiva do Estado (subsídios) ou negativa, aliviando encargos (isenções); (ii) que conceda vantagem; (iii) selectiva; (iii) distorcendo ou ameaçando distorcer a concorrência; e, ainda, (iv) susceptível de afectar as trocas comerciais entre os Estados membros.
Nestas decisões, a Comissão afirmou que a atribuição de vantagem económica aos clubes de futebol tem efeito sobre as trocas comerciais e distorce a concorrência, visto que «[q]uantos mais fundos dos clubes tiveres disponíveis para atrair jogadores de excelência, ou para os manter, maior será o seu sucesso nas competições desportivas, o que promete mais receitas provenientes das referidas atividades». E, na medida em que a vantagem financeira pública a determinado clube de futebol (subsídio, isenção, redução, adiamento, etc.) é susceptível de afectar as trocas comerciais entre os Estados membros e de distorcer a concorrência («na medida em que a sua posição financeira será reforçada em comparação com a dos seus concorrentes no mercado do futebol profissional» - §73), a Comissão Europeia concluiu que as medidas legislativas do Estado constituíam um auxílio sob a forma de privilégio fiscal aos clubes de futebol e incompatível com o mercado interno. Ficando a Espanha obrigada a pôr fim ao tratamento preferencial dos clubes de futebol beneficiários e, ainda, a proceder à recuperação do benefício fiscal que lhes fora concedido a partir do exercício fiscal de 2000.
Cumpre notar que o sentido desta decisão da Comissão Europeia não se encontra isolado no historial de decisões deste órgão sobre auxílios públicos a clubes desportivos, nomeadamente através de vantagens concedidas pelas autoridades locais/municipais quanto a terrenos ou instalações. Conhecem-se decisões, com soluções bem diversas, nos casos NEC, Den Bosch, PSV Eindhoven, Estádios na Flandres, SADs em Espanha ou regime desportivo da Hungria.
O caso Real Madrid era, aliás, bastante específico quando à medida de auxílio. Tratava-se de saber se uma transacção judicial em que as autoridades públicas compensavam financeiramente o Real Madrid pela desistência de um processo contra as mesmas envolvia um auxílio público proibido. Como a Comissão Europeia dizia: «From the perspective of a market economy operator, whether the conclusion of such a settlement agreement is in line with market conditions depends on two factors: first, the probability that it will be held liable for its inability to perform its contractual obligations (the source of the legal dispute) and, second, the maximum extent of its financial exposure resulting from such a finding of liability. Both factors determine whether entering into a settlement agreement is in line with market conditions and under what terms, namely the amount of compensation offered to settle the legal dispute». Negado o respeito pelo princípio do investidor privado, a Espanha foi condenada a ordenar a recuperação de 18 milhões de euros de auxílios ao Real Madrid. É certo, o clube recorreu e o processo está pendente perante o Tribunal Geral, da UE (proc. T-791/16).
* Advogado Especialista em Direito Europeu e da Concorrência. Antigo assistente da Faculdade de Direito de Coimbra