O politicamente correto e o juridicamente incorreto (II)
SÉRVULO NA IMPRENSA 23 Mai 2024 in Jornal de Negócios
Os municípios têm colocado em causa o direito urbanístico à execução de projetos (de energias renováveis). Contudo, não é isso que decorre do artigo 4.º-a do Decreto-lei n.º 30-A/2022 nem do n.º 3 do artigo 134.º do Código do Procedimento Administrativo. Este determina expressamente que “nas situações de comunicação prévia com prazo, a ausência de pronúncia do órgão competente não dá origem a um ato de deferimento tácito, mas habilita o interessado a desenvolver a atividade pretendida […]”. As câmaras ignoram tal normativo e invocam a seu favor, de forma a impedir a execução do projeto, uma alegada revogação de um alegado ato tácito de aceitação.
A questão é tanto mais gravosa do ponto de vista da legalidade e da segurança jurídica, quando o legislador retirou também de forma expressa aos municípios os seus normais poderes de controlo sucessivo deste tipo de projetos. Com efeito, após o decurso do prazo de 30 dias para a emissão da rejeição expressa, o direito de iniciar a operação urbanística em questão não pode, em qualquer caso, por atos jurídicos ou materiais (...), ser posto em crise pela Câmara Municipal, conforme decorre das disposições conjugadas dos n.ºs 9 e 10 do mesmo artigo 4.º-a do Decreto-lei n.º 30-A/2022, de 18 de abril.
O regime é muito claro: após o decurso dos prazos previstos na lei, os municípios estão impedidos de, mesmo em fiscalização sucessiva (a chamada fiscalização), inviabilizar a execução das operações urbanísticas objeto de comunicação prévia, através de embargos ou ordens de demolição, mesmo quando verifique que não foram cumpridas as normas e condicionantes legais e regulamentares ou que estas não tenham sido precedidas de pronúncia, obrigatória nos termos da lei, das entidades externas competentes, ou que com ela não se conformem. A única possibilidade de controlo sucessivo dos municípios neste âmbito que o legislador manteve reporta-se à fiscalização da conformidade da obra com o projeto submetido.
Também parece muito duvidosa, em face das novas normas, a prática de alguns municípios de fazer depender a aprovação deste tipo de projetos do reconhecimento municipal do interesse público relevante respetivo, como faziam antes da entrada em vigor do Decreto-lei n.º 30-A/2022. Com efeito, o interesse público relevante destes projetos decorre expressamente do artigo 3.º do Regulamento (UE) 2022/2577, que estabelece uma presunção ilidível segundo a qual os projetos no domínio das energias renováveis são de interesse público prevalecente e importantes para a saúde e a segurança públicas, presunção essa que, sendo ilidível, apenas poderá ser afastada por decisão expressa fundamentada das câmaras municipais, o que não aconteceu no caso em análise.
Ou seja, no domínio das energias renováveis existe uma presunção de interesse público relevante, consagrada em regulamento europeu que tem aplicabilidade direta na ordem interna dos Estados-membros e que se sobrepõe às normas legais e regulamentares nacionais, nomeadamente aos regulamentos dos planos diretores municipais que muitas vezes estabelecem a exigência de reconhecimento do interesse público por deliberação dos órgãos municipais. Em face do Regulamento (UE) 2022/2.577, não podem os municípios sobrepor um juízo próprio, eventualmente contrário à referida presunção, a não ser que expressamente assim se decidam, ilidindo a presunção de forma fundamentada.
Admitimos que a norma seja inovadora e que a sua redação não seja a mais feliz e compreendemos até, em parte, uma certa resistência dos municípios a este regime que de alguma forma lhes retira margem de apreciação sobre a oportunidade dos projetos e sobre a sua compatibilidade com os objetivos de ordenamento do território definidos localmente, mas a realidade é que essa foi a opção do legislador e são as diretrizes resultantes do Regulamento (UE) 2022/2577, na sequência da qualificação destes projetos como prioritários.
Neste contexto importa também não esquecer o Regulamento (UE) 2024/223 do Conselho, de 22 de dezembro de 2023, de 10 de janeiro que prorrogou as normas especiais do Regulamento (UE) 2022/2577 até 30 de junho de 2025 e também a Carta Solar Europeia, assinada no passado dia 15 de abril de 2024, que constituiu mais um passo para a promoção da produção de energia fotovoltaica.
Esperamos que estes mal-entendidos sobre a interpretação e aplicação do regime jurídico e esta resistência que começa a sentir-se à implementação deste tipo de projetos não tragam também, num futuro próximo, uma litigância entre os promotores e os municípios, a qual, atenta morosidade da justiça administrativa em Portugal, pode efetivamente prejudicar os objetivos e as metas a que Portugal se propôs neste domínio.