O novo regime jurídico do sistema elétrico nacional – uma resposta aos desafios colocados pela transição energética?
SÉRVULO NA IMPRENSA 14 Fev 2022 in Eco
Um dos maiores desafios que se coloca à transição energética é, atualmente, a morosidade (e contestação) no âmbito dos procedimentos administrativos a que os projetos estão sujeitos.
O caminho da transição energética, em certa medida já percorrido através de alguns instrumentos estratégicos (entre eles, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 e o Plano Nacional da Energia e Clima 2030), reclamava ainda a adaptação do Regime Jurídico do Sistema Elétrico Nacional (“SEN”), por forma a assegurar a sua evolução para um modelo dinâmico que permita alcançar os objetivos nacionais e europeus da transição energética e da descarbonização da economia.
Foi neste quadro de profunda transformação que, no passado dia 14 de janeiro, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 janeiro, que, revogando o conhecido Decreto-Lei n.º 172/2006, veio estabelecer a nova organização e funcionamento do Sistema Elétrico Nacional. Aplicando-se a um vasto leque de atividades que passam, pela primeira vez, a integrar o SEN, tais como o armazenamento de eletricidade, a produção de eletricidade para autoconsumo e a emissão de garantias de origem, o novo diploma procurou agilizar a instalação e a entrada em exploração das unidades produtoras de eletricidade, unificando os procedimentos de licenciamento e eliminando a velha distinção entre a produção em regime ordinário e em regime especial.
Uma das principais novidades trazidas pelo novo regime consiste na possibilidade de atribuição de reserva de capacidade de injeção na Rede Elétrica de Serviço Público (“RESP”) com restrições, título este que, como se sabe, constitui condição prévia para a obtenção de licença de produção. Passa a ser possível, assim, por exemplo, atribuir direitos de injeção restritos a determinadas horas do dia, ou limitados à verificação de determinadas condições de irradiação solar ou de velocidade do vento, ou, ainda, ao compromisso de hibridização dos centros eletroprodutores. Este novo modo de atribuição do título mais ambicionado pelas empresas do setor, o TRC, visa potenciar a evolução para um modelo inovador de gestão flexível das redes que permita combater a ociosidade e maximizar o potencial de receção da rede, que, apesar da evolução dos últimos anos, permanece um bem escasso. Ora, a escassez da capacidade da rede está, na verdade, na origem da consagração de novos regimes que não existiam ou que eram regulados de forma insuficiente no diploma anterior.
Falamos, por exemplo, de realidades inovadoras que mereceram grande destaque nesta alteração legislativa, tais como o armazenamento, o sobreequipamento, o reequipamento, os híbridos e a hibridização, as quais se espera que, permitindo uma gestão mais eficiente e sofisticada da capacidade dos centros electroprodutores existentes, permitam potenciar o aproveitamento da capacidade instalada de receção da RESP.
Contudo, é bem sabido que, apesar do esforço que o Governo tem feito no sentido de combater as insuficiências das infraestruturas de rede portuguesas – atribuindo os TRC através de procedimentos concorrenciais que atingiram recordes mundiais de volume de MW atribuído e preços na ordem dos 20 euros por megawatt hora -, os projetos que visam a instalação de centrais fotovoltaicas tardam largos meses (e até anos) a ver a luz do dia. É um facto que um dos maiores desafios que se coloca à transição energética é, atualmente, a morosidade (e contestação) no âmbito dos procedimentos administrativos a que os projetos estão sujeitos, em particular dos procedimentos de licenciamento ambiental.
A este respeito repare-se que, apesar dos avanços deste novo regime jurídico, a legislação continua a estabelecer uma teia complexa de procedimentos que devem ser desencadeados pelos promotores previamente à instalação das centrais, que convoca a intervenção de diversas autoridades administrativas que raramente estão articuladas entre si ou têm lituras convergentes sobre o interesse público associado aos projetos de produção de energia renovável. E, paradoxalmente, as autoridades que mais têm entorpecido a celebridade da implementação de projetos de renováveis que são fundamentais para as metas da transição energética são precisamente as autoridades ambientais. Para além disso, são conhecidas as notícias os focos de contestação por parte de municípios e das populações residentes em redor dos locais de instalação das centrais (not in my backyard…) que conduziram, em certos projetos – alguns com TRC atribuído no leilão de 2019 -, à suspensão dos respetivos procedimentos de avaliação de impacte ambiental.
Consciente destes entraves, o Governo procurou, neste novo diploma, aliviar os promotores do peso dos procedimentos administrativos ao reconhecer o interesse público e a utilidade pública da instalação de centros electroprodutores, mesmo os hibridizados, designadamente para efeito de constituição de servidões e expropriações de utilidade pública, desde que o TRC tenha sido obtido ao abrigo dos leilões. Todavia, este benefício, que é característico dos direitos que são reconhecidos às entidades concessionárias das redes nacionais de transporte e de distribuição e parece ser uma exceção dos procedimentos concorrenciais, foi também alargado às demais unidades de produção no que se refere às linhas de ligação entre a instalação e a rede pública.
Refira-se, porém, que apesar destes avanços, a realidade é a de que os promotores enfrentam ainda sérias dificuldades no licenciamento de projetos que são vitais para a realização dos compromissos nacionais para com a transição energética e a descarbonização da economia. E a verdade é que se prevê que, sem uma intervenção legislativa muito firme, estas dificuldades tendam a aumentar, num cenário em que a escassez de solos para a implementação de centrais fotovoltaicas empurra os projetos para as barragens e outros locais nos quais ao calvário administrativo das licenças, dos pareceres e das autorizações prévias se juntam os complexos processos para obtenção dos títulos de utilização de bens do domínio público.
Leia aqui o artigo de opinião de Mark Kirkby e Catarina Pita Soares.