A transição energética: uma aposta “ma non troppo”?
SÉRVULO NA IMPRENSA 30 Dez 2022 in Expresso
É conhecido o inegável paradoxo entre as metas para adoção de renováveis e o investimento previsto para os combustíveis fósseis na próxima década. Também se tem falado no relativo insucesso na implementação de projetos de hidrogénio verde, apesar do grande enfoque que se pôs neste novo “El Dorado” para a composição do novo mix energético. E tudo isto não se restringe a Portugal.
Mas há uma outra preocupação, fundamental para o sucesso da transição energética, mais concreta, mais imediata e mais nacional: é imperioso que a máquina administrativa e burocrática nacional esteja à altura das exigências e reptos que constantemente são lançados ao setor privado com vista ao atingimento das metas a que Portugal se comprometeu em termos de descarbonização e transição energética. De pouco serve um plano estratégico bem concebido, coerente e a apontar o caminho (certo) e todos os esforços que o Governo tem feito para a sua concretização se, depois, no terreno, o lado público não tem recursos para dar resposta aos projetos que o setor privado concebeu para dar execução a esse plano estratégico ou se há descoordenaçao entre as entidades públicas intervenientes. É preciso honrar o compromisso; cumprir a “promessa”, para assim criar confiança nos promotores que tanto se querem atrair. Numa palavra, é necessária consistência, consistência entre todos os planos e entre todos os patamares da Administração. As políticas públicas, como qualquer estratégia empresarial, não podem ser erráticas.
Estão a ser encerrados liminarmente procedimentos administrativos iniciados por particulares em resposta aos reptos da agenda da transição energética, aparentemente (apenas) com base em preocupações de racionalização do esforço administrativo; noutra frente, foi emitido um projeto de decisão que, com base em interpretação de uma norma legal que existe desde 2014, vem imputar uma obrigação de financiamento (isto é, de pagar) a centros eletroprodutores que, nos últimos anos, não vinham suportando essa obrigação e que, segundo tal projeto de decisão, vão passar agora a ter suportar esse financiamento, corrigindo-se os cálculos para trás. Independentemente da apreciação jurídica que estes estes dois casos possam convocar, inegável é que são dois exemplos de sinais errados ao mercado, por desalinhados com a transição energética, e de falta de consistência global no ataque ao objetivo.
Sendo naturalmente legítimas as preocupações de eficiência administrativa, a verdade é que estas devem atuar a montante dos procedimentos administrativos. Por outro lado, o objetivo de atração do investimento privado, nacional e estrangeiro, ficará pelo caminho se as entidades públicas forem variando ao longo do tempo na interpretação (e correlativa aplicação) do quadro regulatório aplicável e estabilizado, gerando insegurança e falta de conforto nesse quadro normativo. Nem se está a falar de evitar disrupções normativas; em causa está tão-só a coerência na aplicação do regime que existe, que não pode, nem deve, ficar à mercê de oscilações interpretativas e de falhas na coordenação entre os vários intervenientes com responsabilidades públicas.
Se queremos receber investimento e empenho do tecido económico para executar a política energética traçada, é preciso oferecer a montante uma máquina administrativa apta a lidar com o desafio. Mesmo que não se faça agora a inadiável e eternamente adiada reforma da Administração Pública, é no mínimo crucial, neste plano da transição enegética, uma mini-reforma global e consistente no setor do ambiente e da energia. E esta não passa apenas por decretar um simplex ambiental, de iniciativa nacional ou europeia: sem as ferramentas adequadas no terreno – recursos e governança - não se garante que não se deixam passar, em contraciclo, sinais errados como os dos exemplos dados. Projetar, ao invés, a relação administrativa entre o setor público e os investidores privados (que tanto se querem atrair) para o campo da desconfiança ou mesmo para o palco dos tribunais não é, independentemente do mais, prestar um bom serviço à agenda da transição energética. É isto que tem de ser evitado, para ontem.
Artigo de opinião da autoria de Ana Luísa Guimarães, publicado no Expresso.