A Gestão dos Serviços Municipais de Água e a desejada onda generalizada de agregações
SÉRVULO NA IMPRENSA 06 Fev 2018 in Advocatus
Ana Luísa Guimarães
Sócia de direito público da Sérvulo & Associados, Sociedade de Advogados, S.P., R.L. .
O PROGRAMA CEDO ANUNCIADO PELO GOVERNO em funções para o setor da água e saneamento abrangia dois vetores essenciais. Por um lado, o objetivo era reverter parte das agregações dos sistemas multimunicipais (sistemas titulados pelo Estado, fundamentalmente dedicados à gestão em alta) aprovadas pelo anterior Governo em meados de 2015, o que foi concretizado. A outro passo, assumiu-se abertamente uma aposta fundamental nas agregações dos sistemas em baixa (ou, dito de modo juridicamente mais rigoroso, na transformação de vários sistemas de titularidade municipal em sistemas intermunicipais) como resposta ao problema da insustentabilidade de grande parte dos sistemas municipais desde há muito diagnosticado nos planos estratégicos para o setor (inicialmente no PEASAARII e assim se mantém no atual PENSAAR 2020). Também já desde há muito a agregação dos sistemas surge como a solução adequada para debelar esse problema, através da conquista de dimensão e, por essa via, de economias de escala.
Talvez como nunca antes, o atual Governo criou um contexto particularmente facilitador para as agregações de sistemas municipais. Foram canalizados fundos europeus (75 milhões) para os investimentos a realizar pelas entidades agregadas, através do aviso do PO SEUR aberto em março de 2017 e em vigor até 28 de dezembro desse ano e foi criada, junto da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) uma unidade técnica de apoio para os municípios interessados. A interposição do período envolvente das eleições autárquicas de outubro não terá favorecido a desejada dinâmica, mas o certo é que as expectativas publicamente depositadas numa onda de agregações excederam largamente o grau de consenso que foi realmente possível gerar-se pelo País fora. Até final de 2017, o valor disponibilizado pelo PO SEUR ficou longe de ser esgotado, o que levou a que o mesmo tenha sido, já em janeiro, prorrogado até 27 de abril de 2018.
Este é, portanto, um domínio em que sucessivamente o problema se tem mantido por resolver e em que há inequívocos bloqueios à sua resolução. Não se discutindo a bondade dos seus efeitos para o setor e para a população servida, acreditar numa onda generalizada de agregações é talvez pedir demais, mesmo no contexto facilitador atualmente existente. Em primeiro lugar, os municípios têm, nesta matéria, a última palavra e nada lhes pode ser imposto neste domínio. Tratando-se de matérias inscritas na esfera municipal, os timings são, portanto, os seus e os seus processos de formação da decisão têm de ser respeitados e compreendidos.
Em segundo lugar, é certo que o quadro legislativo atualmente em vigor oferece já aos municípios os instrumentos necessários para a concretização da agregação de vários sistemas municipais (desde logo, o Decreto-Lei n.° 194/2009, de 20 de agosto, que aprova o regime dos sistemas municipais, a Lei 75/2013, de 12 de setembro, que aprova, nomeadamente, o regime das autarquias locais e o estatuto das entidades intermunicipais, a Lei n.° 50/2012, de 31 de agosto, que aprova o regime da atividacle empresarial local e das participações locais), não carecendo o País, portanto, neste campo de qualquer reforma legislativa; mas é outrossim inegável que o processo é complexo e exige a ponderação de diversas variáveis, não só jurídicas, mas também técnicas, regulatórias e financeiras.
a) É verdade que, concetualmente, a agregação, que opera no plano da titularidade do sistema, se distingue do respetivo modelo de gestão. Uma coisa é saber quem é o titular do sistema (um ou vários municípios); outra é a escolha de um dos quatro modelos de gestão previstos no mencionado Decreto-Lei n.° 194/2009, de 20 de agosto para a gestão desse sistema (são eles a gestão direta, a gestão delegada em empresa local, a gestão delegada em parceria pública estabelecida entre os municípios e o Estado e a gestão concessionada a entidades privadas, os quais, de resto, não variam consoante os sistemas sejam de titularidade municipal ou intermunicipal). Pode, na verdade, haver pelo País fora - como, aliás, existe - uma multiplicidade de agregações e todas obedecerem a modelos distintos, igualmente profícuos e bem conseguidos.
Todavia, apesar dessa evidente separação lógica, é inevitável que, no contexto de um concreto processo de formação de um sistema de titularidade intermunicipal, se interponham imediatamente ponderações associadas ao modelo de gestão a adotar, o que necessariamente complexifica o processo. Não pode ignorar-se que a decisão de agregação é tomada com base em estudos que demonstrem que a agregação produzirá determinados resultados (demonstração que, consoante o modelo de gestão concreto a adotar, pode ter de ser previamente apresentada e sancionada pelo Tribunal de Contas) e que, verdadeiramente, tais resultados previsionais não são dissociáveis de aspetos intrinsecamente ligados ao futuro modelo de gestão a adotar - como a decisão sobre os ativos que vão ser integrados, sobre o investimento, sobre o modelo e sobre as fontes de financiamento.
b) Noutra perspetiva, é essencial que os municípios participantes assentem num modelo contratual, institucional e de governance que tenha vocação de estabilidade e mecanismos de remedição de conflitos que permita resolvê-los para que ao casamento não se siga um divórcio, terreno este que, evidentemente, é fértil em dissensos e em compreensíveis impasses. Finalmente, tem de reconhecer-se que nessa dinâmica decisória se jogam muitos fatores que não obedecem a uma lógica de estrita racionalidade técnica e económica. Os planos político-partidário e da gestão de relações pessoais e de vizinhança projetam muitas vezes os processos decisórios e negociais, particularmente ao níveis local e regional, para patamares impenetráveis por qualquer leitura à luz da teoria dos jogos (que supõe, como se sabe, a tomada de decisões estritamente racionais).