2022: O ano do whistleblowing
SÉRVULO NA IMPRENSA 05 Jan 2022 in Eco
São múltiplos os casos em que profissionais denunciam publicamente irregularidades internas, respeitantes às organizações que integram. Exemplo recente é o mediático Facebook Leak, acompanhado, porém, de muitos outros, ainda que menos publicitados.
Na verdade, desde há muito que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos analisa conflitos desta natureza, como no recuado Einisch c. Alemanha, de 21 de dezembro de 2011 – pronunciando-se, então, sobre o despedimento de trabalhadora que havia denunciado criminalmente o respetivo empregador – ou, mais recentemente, em Špadijer c. Montenegro (decisão de 9 de novembro de 2021), atenta a ausência de resposta e reação adequadas a denúncia de conduta inapropriada. A exposição e os danos reputacionais são inevitáveis, transferindo-se para o debate público problemas que deveriam ter sido detetados e solucionados muito antes e noutra esfera, pelas organizações.
Este contexto justifica que, mesmo na reta final de 2021, em 20 de dezembro, tenha sido publicada a Lei n.º 93/2021, que procedeu à transposição da Diretiva (UE) n.º 2019/1937, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do Direito da União Europeia. Está, assim, dado o passo para uma significativa alteração comportamental na gestão das organizações.
Um tal objetivo resulta evidente na arquitetura da Diretiva e na exposição de motivos que enquadra a Proposta de Lei n.º 91/XIV, na origem da Lei n.º 93/2021: “[a]s pessoas que trabalham numa organização pública ou privada, ou que com elas contactam profissionalmente, estão, por vezes, numa posição privilegiada para tomar conhecimento de ameaças ou de lesões efetivas que surgem no contexto dessas organizações”. Contudo, estão igualmente “[e]xpostas a retaliações, com incidência na sua situação laboral, o que constitui um importante fator de inibição e de injustiça”.
Para muitos, entre os preparativos das festas e a pausa de final do ano, esta pequena grande novidade passou despercebida. Implica, no entanto, uma mudança de paradigma, ditando a transição, em cerca de seis meses (até 18 de junho de 2022), para uma cultura de proatividade no acolhimento e tramitação de denúncias.
Na génese da Diretiva e do diploma recentemente publicado está o propósito de acolhimento de um regime transversal de tutela. Tal é prosseguido por duas vias: (i) as novas obrigações têm um âmbito subjetivo alargado, vinculando pessoas coletivas que empreguem, por regra, 50 (cinquenta) ou mais trabalhadores, aqui se incluindo entidades privadas, o Estado e outras pessoas coletivas de Direito Público; (ii) o conceito de “infração” passível, neste âmbito, de denúncia, é muito abrangente, abarcando qualquer ato ou omissão contrário ao Direito Europeu, num leque muito alargado de temáticas.
Em especial, é criada a obrigação de implementação de canais e de procedimentos de denúncia interna, conformes aos eixos essenciais do novo enquadramento, sendo fundamental assegurar aos denunciantes uma tutela eficaz, que os proteja contra atos de retaliação. Na esfera laboral, este é um passo importante, atento o risco de qualificação da conduta delatora como infração grave do dever de lealdade, que impende sobre os trabalhadores. Deve ser também assegurada confidencialidade quanto à identidade do denunciante – que pode, todavia, manter-se anónimo –, das pessoas visadas e de terceiros mencionados na denúncia, exigindo-se, naturalmente, observância do disposto no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados.
No imediato, importa, pois, que as organizações deem observância ao novo pacote normativo, fixando prioridades, estruturando ou revisitando políticas internas, implementando ou reorganizando linhas/canais de ética, calendarizando ações de formação, (re)definindo planos de ação e de acompanhamento de denúncias. Não agir é que não será, por certo, opção: 2022 será, por isso, seguramente, o ano do whistleblowing.
Leia o artigo de Rita Canas da Silva em Eco, aqui.