Um novo regime para as PIRC: dúvidas e perplexidades
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 03 Set 2019
O Verão foi uma vez mais aproveitado para alterações legislativas na área das práticas comerciais restritivas (‘PIRC’), que visam o “fortalecimento da transparência” e o “reforço das disposições sobre o equilíbrio das posições negociais entre operadores económicos”, mas sem ter inteiramente em conta o peso relativo de uns e outros.
Trata-se da segunda alteração ao já de si recente regime, estabelecido em 2013 e já alterado em 2015. A amplitude das modificações é tal que o diploma (Decreto-Lei n.º 166/2013) foi republicado, junto do Decreto-Lei n.º 128/2019, de 29 de agosto, o qual, contudo, não invoca qualquer urgência legislativa, pelo que surpreende a sua adoção neste período estival e pré-eleitoral: como é sabido, a recente aprovação da Diretiva (UE) 2019/633 imporá que, no prazo de menos de um ano, haja uma nova intervenção legislativa nesta matéria.
Do rol de novidades que entrarão em vigor no dia 1 de janeiro de 2020, destaca-se um conjunto de soluções que visam assegurar uma melhor separação entre o regime das PIRC e o direito da concorrência. E isso é de saudar. Mas se não é este o espaço adequado para analisar as alterações, destaquem-se apenas algumas: primeiro, o foco deixa de estar nas empresas estabelecidas em Portugal para se centrar numa teoria dos efeitos, aplicando-se o regime tanto a práticas que ocorram em território nacional como as que aqui possam produzir efeitos (cfr. artigo 2.º, n.º 1). Na verdade, o critério anterior era discriminatório e totalmente inadaptado.
Segundo, a justificada revogação dos artigos 3.º e 6.º, que tratavam das chamadas práticas discriminatórias e recusa de venda. Pode dizer-se, porventura, que se reconhece que são matérias que estão na autonomia privada, em grande medida, e que devem ser apenas tratadas no contexto do direito da concorrência. A solução não deixa de surpreender pela ousadia. Mas, outrossim, é pena que idêntica solução não tenha sido também adotada em relação à chamada “venda com prejuízo”, pois que também nesta é o direito da concorrência quem fornece o enquadramento e as soluções adequadas, ao passo que a sua previsão nas PIRC constitui um contrassenso e um travão a uma saudável concorrência nos mercados, com evidente prejuízo para os consumidores. Aliás, ver-se-á de que modo a manutenção desta proibição é congruente com a mensagem que proíbe as empresas de adotarem práticas negociais de “impedimento de venda a qualquer outra empresa a um preço mais baixo” (que substitui a anterior “imposição da impossibilidade”). Há uma crescente aproximação e interligação entre o regime jurídico das PIRC e o da Concorrência com a previsão da Autoridade da Concorrência como entidade co-avaliadora deste diploma, a par com a DGAE e ASAE (cfr. artigo 18.º, n.º 1).
São dois os institutos nos quais, no entanto, o legislador mais procurou intervir, em termos materiais: a revenda com prejuízo (artigo 5.º) e as práticas comerciais abusivas (artigo 7.º).
No primeiro, o legislador começa por procurar esclarecer o conceito de “preço de compra efetivo” e, se se parece mexer na solução de 2015, o certo é que continua a aceitar que as notas de crédito e débito relevam (como não podia deixar de ser) para a determinação do preço de compra efetivo, somente estabelecendo um prazo de três meses para a sua emissão (contado da data da fatura). Quanto ao mais, à primeira vista parece-nos que o diploma vem facilitar os descontos diferidos no tempo e a assincronia objetiva, em que só aqueles descontos concedidos imediatamente na venda de um produto ou que se destinem à aquisição posterior do mesmo produto é que são relevantes para a determinação do preço de venda (rectius, para se saber se o produto foi vendido ou não abaixo do preço de compra efetivo). Nota merece-nos ainda o novo n.º 13 do artigo 5.º, cuja constitucionalidade nos parece duvidosa.
Refira-se ainda que o diploma impõe a obrigação de as empresas possuírem e conservarem, física ou digitalmente, por um prazo de três anos, as tabelas de preço, condições de venda, contratos de fornecimento e outras disposições reduzidas a escrito, documentos estes que podem ter de ser disponibilizados à ASAE enquanto entidade fiscalizadora (cfr. artigo 4.º, n.º 5). Já meramente proclamatória – como não poderia deixar de ser, quer devido à sua forma quer por falta de sanção – é a declaração feita no novo n.º 1 do artigo 4.º, segundo o qual «os contratos e acordos» (sic, num exemplo de péssima legística)se devem basear na “existência de contrapartidas efetivas e proporcionais aplicáveis às suas transações comerciais de fornecimento de produtos ou de prestação de serviços”.
No domínio das práticas negociais abusivas verifica-se um aumento dos comportamentos que passam a constituir contraordenação punível nos termos do artigo 10.º, n.º 3. Nem se refiram aqui as alterações à alínea d) do n.º 1 ou ao n.º 3 do artigo 7.º, que introduz uma álea que, totalmente justificada, terá profundas implicações, dada a natureza forçosamente complexa da relação de fornecimento entre duas empresas. Por exemplo, o tratamento dado à dedução de valores (com a sua proibição quando a outra parte se pronuncie desfavoravelmente, e fundamentadamente, no prazo de 25 dias) mostra apenas a incompreensão do legislador pela natureza duradoura e complexa das relações de fornecimento, que existem no interesse de ambas as partes, implicando, no entanto, uma adaptação das empresas a esta nova realidade normativa.
O n.º 4 do artigo 7.º, por sua vez, proíbe práticas unilaterais que resultem (i) numa imposição de antecipação de cumprimento de contratos, sem a correspondente indemnização, ou (ii) numa imposição de débitos não contratualmente previstos, após o fornecimento dos bens ou serviços. Práticas negociais, acordadas nesse sentido, contudo, não são proibidas.
Ainda neste âmbito cumpre destacar o facto de, ao abrigo do n.º 5 do artigo 7.º, a vasta maioria das práticas negociais abusivas que se aplicavam somente ao setor agroalimentar (cfr. anterior artigo 7.º, n.º 3) serem agora de aplicação universal às micro e pequenas empresas presentes nos demais setores de atividade económica. Ao setor agroalimentar mantém-se a proibição dos comportamentos que constam do n.º 6 do mesmo artigo 7.º.
A presente alteração tem ainda como fito o reforço dos poderes da ASAE enquanto entidade fiscalizadora, algo bastante evidente com alterações no âmbito das medidas cautelares – para que estas possam ser impostas basta, agora, que uma determinada prática tenha a suscetibilidade de afetar o normal funcionamento do mercado (cfr. artigo 8.º, n.º 1), enquanto antes era necessário que o comportamento fosse suscetível de provocar prejuízo grave, de difícil ou impossível reparação a outras empresas -, mas especialmente com o aditamento do artigo 7.º-A, que pretende reforçar os poderes inspetivos da ASAE, que ficam apenas dependentes do “conhecimento da prática de infração”. Como forma de incentivo às denúncias, o legislador decidiu não só garantir a confidencialidade aos denunciantes, mas também estabeleceu que estes, ao prestarem informações à entidade fiscalizadora, não se encontram a incumprir qualquer dever de segredo ao qual se encontrem sujeitos por via de regulamento ou contrato (cfr. artigo 7.º-A, n.ºs 2 e 3). Fica a questão de saber se, em futuras alterações a este regime jurídico, será ponderado um sistema de clemência como o que já existe no Regime Jurídico da Concorrência.
Em suma, o ano de 2020 irá iniciar-se com modificações muito significativas em domínios sensíveis e que impõem mudanças concretas à forma como as empresas se relacionam no mercado. Os próximos três meses, em que as empresas preparam o seu quadro relacional para o ano seguinte, serão decisivos para uma boa adaptação às alterações introduzidas. Como tal, as palavras-chaves para este período transitório são de compliance e de formação interna com o propósito de interiorizar e implementar estas alterações, promovendo práticas mais transparentes, equilibradas e leais entre os vários agentes de mercado.
Miguel Gorjão-Henriques
Guilherme Oliveira e Costa