Tribunal de Justiça sobre contratos de mútuo bancário: declaração de nulidade de cláusulas abusivas aplicada retroativamente
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 20 Jan 2017
A matéria contratual é sempre objeto de muita jurisprudência e a descida das taxas de juro e indexantes nos contratos de mútuo bancário tem suscitado diversos problemas, mormente aos bancos, com a evolução para taxas negativas. Entre as soluções adotadas pelas instituições de crédito constavam as cláusulas “barreira” ou “suelo”, que os tribunais espanhóis consideraram abusivas, sem retirar todas as consequências, pelo que a sua conformidade com a Diretiva relativa às cláusulas abusivas foi recentemente apreciada pelo Tribunal de Justiça, em resposta a reenvios prejudiciais de tribunais espanhóis decididos no passado dia 21 de Dezembro de 2016.
Recordem-se os factos. Em Espanha, muitas instituições de crédito incluíam nas condições gerais dos contratos que celebravam com os seus clientes cláusulas que previam uma taxa mínima abaixo da qual a taxa de juro variável não podia diminuir (conhecidas como cláusulas «suelo»). Ora o Tribunal Supremo, através de acórdãos de 2013 e 2015, declarou a nulidade dessas cláusulas, por violação das obrigações de transparência e boa-fé aquando da celebração do contrato, mas excluiu a retroatividade dos efeitos dessa nulidade, em obediência ao princípio da segurança jurídica (ex nunc). Com efeito, para este órgão judicial, «as cláusulas «suelo» eram lícitas enquanto tais, que respondiam a razões objetivas, que não eram nem inabituais nem extravagantes, que a sua utilização tinha sido tolerada durante muito tempo no mercado do crédito imobiliário, que a sua nulidade se baseava na falta de transparência resultante de uma informação insuficiente dos mutuários, que os estabelecimentos bancários tinham respeitado as exigências regulamentares de informação, que a fixação de uma taxa de juro mínima respondia à necessidade de manter um rendimento mínimo dos mútuos hipotecários em causa a fim de permitir aos estabelecimentos bancários cobrir os custos de produção envolvidos e continuar a atribuir esses financiamentos, que as cláusulas «suelo» eram calculadas de forma a não implicar alterações significativas nas quantias a pagar inicialmente, quantias que os prestadores tinham em conta, no momento em que decidiam as suas atuações económicas, que a legislação espanhola autorizava a substituição do credor e que a retroatividade da declaração de nulidade das cláusulas em causa provocaria perturbações económicas graves».
Em dois reenvios de tribunais de instância, os juízes espanhóis questionaram o Tribunal de Justiça sobre se a jurisprudência do Tribunal Supremo era compatível com o artigo 6.º, n.º 1, da Diretiva 93/13/CEE sobre as cláusulas abusivas. E a resposta do Tribunal de Justiça foi clara:
As normas que protegem os consumidores têm carácter de normas de ordem pública e os tribunais devem retirar todas as ilações da declaração da natureza abusiva da cláusula, não podendo modificar o sentido da cláusula nem limitar os efeitos da nulidade. O Tribunal de Justiça, na esteira de jurisprudência anterior, fixa os limites da competência dos Estados membros: «embora caiba aos Estados membros, através dos respetivos direitos nacionais, definir as modalidades segundo as quais se procede à declaração do caráter abusivo de uma cláusula constante de um contrato e se materializam os efeitos jurídicos concretos dessa declaração, não é menos verdade que tal declaração deve permitir restabelecer a situação de direito e de facto em que o consumidor se encontraria se essa cláusula abusiva não existisse, designadamente através da constituição de um direito à restituição das vantagens indevidamente adquiridas, em seu prejuízo, pelo profissional com fundamento na referida cláusula abusiva».
Mas se a jurisprudência nacional pode ressalvar o efeito de caso julgado de decisões judiciais anteriores ou se as ações a propor pelos consumidores estão sujeitas a prazos legais internos de caducidade e prescrição, compete em exclusivo ao Tribunal de Justiça e não aos Estados membros decidir sobre as limitações no tempo decorrentes da interpretação das normas da União, no caso o artigo 7.º da Diretiva 93/13/CEE.
Em consonância, o Tribunal de Justiça declarou que os tribunais nacionais não podem seguir a jurisprudência do Tribunal Supremo, sobre a limitação dos efeitos, por a mesma se afigurar incompatível com o direito da União. Esta jurisprudência é mais uma demonstração da visão que o Tribunal de Justiça tem do seu papel de garante da uniformidade na aplicação do direito da União. E uma indicação firme para a liberdade dos tribunais inferiores de realizarem reenvios mesmo quando existir jurisprudência uniformizadora dos tribunais superiores.
O Tribunal de Justiça considerou que o juiz nacional deve desaplicar uma cláusula abusiva para que esta não produza efeitos em relação ao consumidor, e restabelecer a situação, de facto e de direito, na ausência de uma tal cláusula. Assim, «daqui decorre que a obrigação que incumbe ao juiz nacional de afastar uma cláusula contratual abusiva que impõe o pagamento de quantias que se revelam indevidas implica, em princípio, um correspondente efeito de restituição relativamente a essas mesmas quantias».
Entendemos que o efeito de radiação (na terminologia de Barbosa de Melo) ou de precedente deste acórdão na ordem jurídica portuguesa será limitado, pelo menos no sector bancário, tanto mais quanto a admissibilidade destas acções depende do respeito por regras nacionais, mormente de prescrição e caducidade. Não pode, no entanto, negar-se a enorme relevância prática horizontal do acórdão.