Transposição das Diretivas CRD V e BRRD II
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 23 Jan 2023
Parte I – Alterações à legislação bancária
1. Introdução e contexto legislativo
No dia 10 de dezembro de 2022 entrou em vigor a Lei n.º 23-A/2022, de 9 de dezembro (“Lei”), que promove uma revisão de um conjunto amplo de diplomas de âmbito bancário e financeiro, transpondo as Diretivas (UE) 2019/878 (“CRD V”), relativa ao acesso à atividade bancária e supervisão prudencial e (UE) 2019/879 (“BRRD II”), relativa à recuperação e resolução de instituições de crédito e empresas de investimento. As Diretivas têm por objeto reforçar os mecanismos de supervisão da atividade das instituições de crédito e a sua capacidade de absorção de perdas em caso de eventual resolução, respetivamente.
No domínio especificamente bancário, a Lei procede a alterações (i) ao Regime Geral das Instituições de Crédito (“RGICSF”), (ii) ao Regime da liquidação de instituições de crédito e sociedades financeiras com sede em Portugal e suas sucursais criadas noutro Estado membro, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 199/2006, de 25 de outubro, e (iii) ao regime que estabelece medidas de reforço de solidez financeira das instituições de crédito no âmbito da iniciativa para o reforço da estabilidade financeira e da disponibilização de liquidez nos mercados financeiros, aprovado pela Lei n.º 63-A/2008, de 24 de novembro.
A Lei procede à introdução de uma importante reforma bancária promovida pela União Europeia, que é constituída, a par do CRD V e do BRRD II, dos Regulamentos (UE) n.º 806/2014 relativo ao Mecanismo Único de Resolução (“SRMR”) e (UE) n.º 575/2013 relativo aos Requisitos de Fundos Próprios (“CRR”) (“Banking Package”). Por esta razão, as alterações agora introduzidas no domínio bancário refletem-se, de modo especial, no RGICSF, o que determinou a republicação.
2. Principais alterações à legislação bancária
a. Aspetos relacionados com a CRD V
As alterações introduzidas no RGICSF pela transposição da CRD V atravessam um conjunto amplo das regras relacionadas com o âmbito da supervisão prudencial, atravessando as matérias relacionadas com a remuneração de colaboradores cujas atividades têm um impacto significativo no perfil de risco da instituição de crédito, as medidas e poderes de supervisão, as medidas de conservação de fundos próprios e ao reforço do princípio da diversidade nos órgãos de gestão.
O regime das políticas remuneratórias nas instituições de crédito é sujeito a uma dupla revisão: visa-se, por um lado, assegurar a neutralidade das mesmas. Para o efeito, as instituições de crédito são obrigadas a dispor de políticas e práticas de remuneração que, para além de se revelarem consentâneas com uma gestão e prudente do risco, sejam neutras do ponto de vista do género. Para o efeito, precisa-se que “política de remuneração neutra do ponto de vista do género” baseia-se na igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos por trabalho igual ou de valor igual.
A matéria das políticas remuneratórias é revista, por outro lado, sob o objetivo de assegurar que a sua exigência cumpre requisitos de proporcionalidade e adequação à dimensão e estrutura de cada instituição de crédito. Sob o princípio “one size does not fit all“, as obrigações decorrentes do pagamento da componente variável de remuneração de colaboradores cujas atividades profissionais têm um impacto significativo no perfil de risco da instituição de crédito, e que impõem genericamente um diferimento no pagamento de parte substancial da mesma (pelo menos 50%) durante um período mínimo de quatro a cinco anos, não se aplica a instituições de crédito que não sejam instituições de grande dimensão e a colaboradores cuja componente variável da remuneração anual não ultrapasse € 50.000 e não represente mais do que um terço da sua remuneração anual total.
Paralelamente, são introduzidas regras que visam a densificação dos critérios de aplicação de fundos próprios adicionais, bem como à revisão do regime das respetivas reservas e medidas de conservação, reforçando o seu âmbito e eficácia. Para o efeito, a Lei introduz um conjunto renovado de disposições que visam identificar as situações relativamente às quais o Banco de Portugal deverá exigir o cumprimento de fundos próprios adicionais superiores aos requisitos previstos no Regulamento (UE) n.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013. Estas disposições justificam-se com o facto de a exigência do cumprimento de requisitos de fundos próprios adicionais se encontram diretamente ligada aos possíveis factos geradores de restrições ao nível da instituição, como sejam as relacionadas com pagamentos de juros ou dividendos por uma instituição de crédito aos acionistas ou titulares de instrumentos de fundos próprios adicionais de Nível 1.
Também em virtude da transposição da CRD V, salienta-se a introdução de uma nova alínea ao artigo 2.º-A do RGICSF (alínea z)), importando à regulação do setor bancário um novo conceito de “Grupo”, remetendo-se ao disposto no Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, que aprova o Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”). Deste modo, a determinação da existência de uma relação de Grupo desliga-se, doravante, do apuramento da existência de uma relação de coligação societária, e passa a aferir-se através do critério contabilístico de consolidação.
Finalmente, realça-se que no que respeita aos procedimentos de (i) recusa e revogação de autorização de instituição de crédito, (ii) de exercício dos órgãos de administração e fiscalização por falta de adequação e (iii) a inibição por motivo superveniente, estes são agora sujeitos a um prazo de decisão de 180 dias úteis. A fixação deste prazo altera, assim, a regra geral constante no Código do Procedimento Administrativo, que contempla um prazo de decisão geral de 90 ou 120 dias úteis, consoante esteja em causa um procedimento de natureza oficiosa ou de iniciativa particular.
b. Aspetos relacionados com a BRRD II
A transposição da BRRD II implica, no domínio bancário, a introdução de novas regras nos domínios da resolução bancária, assim como à promoção de mecanismos ao dispor das autoridades de resolução para melhor lidar com esta circunstância.
Destaca-se aqui, em primeiro lugar, a revisão ao regime relativo aos requisitos mínimos de fundos próprios e créditos elegíveis (Minimum Requirement for own funds and Eligible Liabilities, ou “MREL”). Dentro da ampla revisão das regras destinadas a fortalecer a resiliência das instituições de crédito, salienta-se a introdução de um montante de fundos próprios e créditos elegíveis correspondente a 8% do total de passivos, incluindo os fundos próprios, aplicável a instituições (e filiais) de importância sistémica global – “G-SII”.
Salienta-se também a revisão do regime do reconhecimento contratual da recapitalização interna. Pretende-se neste âmbito que as instituições de crédito incluam nos seus instrumentos e contratos uma cláusula em que o credor reconhece que o seu crédito pode ser objeto dos poderes de redução ou de conversão e aceita a produção dos respetivos efeitos (com exclusão de contratos que constituam um depósito, entre outros). A revisão agora empreendida pretende, entre outros objetivos, proporcionar maior segurança em casos de resolução transfronteiriça, inclusivamente em relação a credores cuja atividade não seja regulada pelo Direito da União Europeia.
Por fim, reveste-se de interesse particular a introdução de um montante mínimo nominalmente fixado para a distribuição de instrumentos junto a investidores não profissionais. Doravante, os instrumentos de fundos próprios , com exceção dos instrumentos de fundos próprios principais de nível 1, instrumentos de dívida que devam ser pagos depois dos créditos comuns e antes dos créditos subordinados em caso de insolvência da instituição de crédito (tal como definidos no Decreto-Lei n.º 199/2006, de 14 de agosto), e ainda os instrumentos de créditos elegíveis subordinados, apenas podem ser distribuídos a investidores não profissionais se (i) o montante total do investimento não ultrapassar 10% do total da carteira de instrumentos financeiros e (ii) o investimento ascender a pelo menos € 10.000,00.
Guilherme Ribeiro Martins | grm@servulo.com
José Eduardo Oliveira | jpo@servulo.com