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This is not a drill: A Transposição da Diretiva ECN+ em Portugal

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 19 Ago 2022

Foi publicada a tão aguardada Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, que, após um processo legislativo complexo, transpõe para o nosso ordenamento jurídico a Diretiva ECN+ (Diretiva (UE) 2019/1, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados membros competências para uma aplicação mais eficaz). A SÉRVULO teve oportunidade de se pronunciar publicamente sobre a proposta de Anteprojeto apresentada pela Autoridade da Concorrência (“AdC”), e saliente-se, desde já, a eliminação de várias alterações que considerámos controversas, por irem para além do âmbito da própria Diretiva e poderem violar a Constituição.

A importância deste diploma na vida diária das empresas é notória. A conformidade com o Direito da Concorrência ocupa um destaque cada vez maior na estrutura das empresas. Só este verão ficou marcado por diversas decisões da AdC em sectores económicos como o desporto, a segurança privada ou o retalho alimentar, a um ritmo praticamente semanal. A transposição da Diretiva não é sequer necessária para mostrar a eficácia da ação da AdC. Mas a verdade é que a nova lei consagra alterações de enorme relevo. Percorramos, então, algumas das principais alterações à Lei n.º 19/2012, de 8 de maio (“Regime Jurídico da Concorrência” ou “RJC”), embora um sem número de matérias que são modificadas estruturalmente e de modo significativo não serão aqui abordadas[1].

Poderes de investigação da AdC

A nova legislação reformulou os artigos 18.º e 19.º do RJC, relativos aos poderes de busca, exame, recolha e apreensão, bem como ao regime das buscas domiciliárias, respetivamente, e adita um novo artigo 17.º-A, que passa a regular de modo autónomo os poderes de inquirição. O artigo enuncia os requisitos essenciais a que deve obedecer a convocatória para inquirição.

No que toca aos poderes de busca, exame, recolha e apreensão, o leque de poderes mantém-se em tudo semelhante ao que já vigorava entre nós. Mas deve salientar-se que, se em todos os momentos a AdC e o Governo propuseram a previsão da apreensão de mensagens de correio eletrónico, a lei não o consagra, uma vez mais. Fica assim claro que tal não é admissível em processos contraordenacionais por violação do Direito da Concorrência. Além de diversos pareceres negativos[2], no último processo legislativo são as próprias Nota de Admissibilidade e Nota Técnica dos serviços do Parlamento que referem estarem ultrapassadas as questões de inconstitucionalidade, na medida em que deixou de ser referida a possibilidade de apreensão e utilização como prova de correspondência e mensagens eletrónicas, respeitando-se assim o artigo 34.º, n.º 4, da Constituição.

Quanto às buscas domiciliárias, para além de permitidas para as situações de fundadas suspeitas de que existem provas da violação das regras sobre práticas restritivas da concorrência (artigo 9.º RJC) e abusos de posição dominante (artigo 11.º), passam também a ser possíveis em relação a abusos de dependência económica (artigo 12.º do RJC). Adicionalmente, a realização de buscas em escritório de revisor oficial de contas é equiparada às buscas em escritório de advogados ou consultórios médicos.

Prescrição

O tema da prescrição foi também revisto no processo de transposição da Diretiva. Saliente-se a introdução do artigo 74.º, n.º 9, do RJC, nos temos do qual a prescrição do procedimento por infração suspende-se pelo período de tempo em que a decisão da AdC for objeto de recurso judicial (incluindo recursos interlocutórios ou recursos para o Tribunal Constitucional), sem qualquer limitação temporal. A solução é excessiva e claramente desproporcional, violando também princípios de segurança e certeza jurídica. Se passar o juízo de constitucionalidade, o que se duvida, significaria que, durante a pendência de qualquer litígio perante um tribunal no âmbito de um procedimento sancionatório da AdC, o prazo de prescrição não correria. Note-se que o próprio Supremo Tribunal Administrativo já admitia esta inconstitucionalidade nas Observações que apresentou à Consulta Pública do Anteprojeto preparado pela AdC.

Recursos

A nova redação clarifica o prazo de interposição de recursos de decisões interlocutórias: 20 dias úteis (artigo 85.º, n.º 1, do RJC). A decisão dos recursos será feita por despacho, salvo se o Tribunal considerar necessária a audiência de julgamento.

Também o prazo de interposição de recurso de decisões finais é alterado, passando de 30 dias úteis para 60 dias.

No entanto, a lei mantém a regra geral do efeito devolutivo dos recursos das decisões da AdC, incluindo nos recursos interlocutórios. Para ser atribuído efeito suspensivo a um recurso de uma decisão que imponha sanções, o visado deixa de ter de demonstrar o prejuízo considerável que a execução da decisão lhe traria, mas fica obrigatoriamente condicionado ao pagamento de uma caução no valor de 50% da coima aplicada.

Destaque-se ainda a introdução do artigo 86.º-A relativo às reações a decisões no âmbito de diligências de buscas e apreensões, em que todos os incidentes, arguições de nulidade e requerimentos devem ser dirigidos à autoridade judiciária que autorizou o respetivo ato.

Coimas

Em último lugar, também as normas que se referem aos limites máximos das coimas foram alteradas. Assim, as coimas que a AdC passa a poder aplicar terão como limite máximo 10% do volume de negócios total, a nível mundial, realizado no exercício imediatamente anterior à decisão final proferida pela AdC, pelo conjunto de pessoas que integrem cada uma das empresas infratoras (artigo 69.º, n.º 4, do RJC). Contudo, como válvula de escape, estabelece o artigo 69.º, n.º 7, do RJC, que esse valor não pode ser superior ao que resultaria tendo por referência o valor correspondente ao ano económico anterior ao ano da infração.

Esta solução é atentatória do princípio da igualdade, nomeadamente entre aqueles grupos empresariais que tenham uma dimensão multinacional e aqueles que atuam predominantemente em Portugal. Deixa de ser aplicada a regra, até agora vigente, de o limiar máximo da coima corresponder a 10% do volume de negócios da empresa (a qual era, tipicamente, circunscrita ao território nacional).

Conclusão

A presente lei entrará em vigor já a 17 de Setembro de 2022.

Estão em causa alterações ao RJC de largo espetro e enorme relevo para as empresas. Globalmente, a AdC vê-se munida de mais vastos poderes de investigação e os direitos das empresas arguidas são comprimidos. Uma vez que as empresas se veem confrontadas com consequências potencialmente mais gravosas, é conveniente que haja lugar ao desenvolvimento de programas de compliance destinados a prevenir, detetar e fazer cessar eventuais infrações ao direito da concorrência.

 

Miguel Gorjão-Henriques | mgh@servulo.com

Alberto Saavedra as@servulo.com

Francisco Marques de Azevedo | fma@servulo.com



[1] A Lei n.º 17/2022 modifica normas sobre pedidos de elementos, inquirições de pessoas coletivas e singulares (incluindo durante as buscas, sobre factos ou documentos relacionados com a infração); segredo de justiça e publicidade das decisões; procedimentos de clemência, de transação e arquivamento mediante imposição de condições; elaboração de versões não confidenciais; acesso ao processo por parte de co-visadas e de terceiros; meios de prova; medidas provisórias; critérios para a determinação da medida da coima; pagamento a prestações das coimas; sanções pecuniárias compulsórias; responsabilidade pela prática das infrações, etc. Vejam-se ainda as alterações aos Estatutos da AdC no sentido de lhe conferir uma maior independência (por exemplo, através da alteração das suas regras de financiamento).

[2] Destacamos os pareceres dados pela Comissão da Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação (CEIOPH) e pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (CACDLG) no âmbito do processo legislativo ambos no sentido da inconstitucionalidade da redação proposta pelo Governo para a alínea b), do n.º 1, do artigo 18.º do RJC relativa à apreensão de correio eletrónico, por violação do artigo 34.º, n.º 4, da CRP.