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Olhar para a Floresta, mas focar-se apenas na Árvore: as opções legislativas do Decreto-Lei n.º 108/2021

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 15 Dez 2021

A importância do setor do turismo para a economia portuguesa e, nele, das novas tecnologias, é indiscutível, mas a pandemia e as eleições parecem baralhar a cabeça do legislador. Indiscutível é, igualmente, o impacto que as novas tecnologias, em particular as plataformas digitais, têm tido, levando a uma constante adaptação e inovação de comportamentos e estratégias por parte das empresas do setor.

Num movimento parcelar e exótico, através do recém-publicado Decreto-Lei n.º 108/2021, de 7 de dezembro, o Governo vem alterar, milimetricamente, o Regime Jurídico da Concorrência (“RJC”), o Regime das Práticas Individuais Restritivas do Comércio (“PIRC”) e o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (“RCCG”), buscando soluções que, é verdade, mas com matizes diversas, têm sido adotadas noutros Estados membros, como França ou Itália. No entanto, é curioso que diga fazê-lo com motivações de política comercial (a que aludem as alíneas do artigo 99.º da Constituição) mas altere o RJC (onde o valor fundamental é o da liberdade e, sim, combate aos abusos – artigo 81.º da Constituição), ao mesmo tempo que, visando impedir práticas contratuais ao abrigo do artigo 9.º do RJC, invoca dirigir-se contra empresas em posição dominante, matéria que é regulada noutro exciso do mesmo diploma (artigo 11.º). Parece, pois, que se confundem alhos com bugalhos… 

A alteração ao RJC aparece também, talvez, como extemporânea, pelo menos considerando a transposição da  Diretiva (UE) 2019/1, já em atraso e que se antevê como controversa, atento o projeto que se encontrava em discussão na Assembleia da República (sobre o qual a  Sérvulo teve a oportunidade de se pronunciar). Resultado: o artigo 9.º vai afastar-se da redação do homólogo artigo 101.º, n.º 1, do Tratado, com a adição de uma nova alínea a declarar que poderá constituir prática restritiva da concorrência, no fornecimento de bens ou serviços de alojamento em empreendimentos turísticos ou de alojamento local, o estabelecimento de condições contratuais pelas quais um intermediário que atue através de plataforma eletrónica impeça que a contraparte ou um terceiro ofereçam, por qualquer meio, preços ou condições de venda do mesmo bem ou serviço que sejam mais vantajosas do que as praticadas por ele. Por outras palavras, passa a lei a prever expressamente a restritividade para a concorrência de cláusulas de paridade de preços. Seria necessário? A nosso ver, esta prática já podia cair na proibição constante da alínea a) desse mesmo artigo e número, sendo por isso redundante. Com efeito, já hoje a lei interna, como também a da União Europeia, proíbem práticas coligadas de fixação de preços e/ou de outras condições de transação.

É, assim, incompreensível - e passível de criar dúvidas interpretativas na aplicação da lei - que o legislador tenha confinado esta “nova” proibição a um setor específico da economia quando, na verdade, as cláusulas de paridade de preço amplas são suscetíveis de constituir uma restrição da concorrência independentemente do setor da economia em que ocorram. Reveste-se igualmente de difícil compreensão e, aliás, aparenta ser injustificadamente discriminatório, o requisito de o intermediário atuar através de plataforma eletrónica, pois, parece-nos, que a implementação de cláusulas deste tipo por intermediários que operem, por exemplo, em espaços físicos também poderá ser contrária ao RJC.

No que toca ao diploma das PIRC, é introduzido “um mecanismo similar ao da proibição da venda de bens com prejuízo” (novo artigo 5.º-A). Assim, passa a ser proibido aos intermediários que atuem através de plataformas eletrónicas (e, novamente, só a estes), também no setor do turismo, oferecerem a uma empresa ou a um consumidor um preço inferior ao preço de venda ao público acordado com o fornecedor do bem ou o prestador do serviço, mesmo que à custa de uma redução da sua remuneração.

Trata-se assim, parece, da primeira incursão do legislador na venda com prejuízo de serviços, matéria até hoje fora do âmbito da norma da “proibição de revenda com prejuízo”, que se circunscrevia a bens/mercadorias. Abre-se uma caixa de pandora, talvez. Mas, mais absurdo, parece prever-se a legalidade de acordos de fixação de preços mínimos. Ou, mal vemos, ou o legislador parece impor ao intermediário que obtenha, sempre e em qualquer circunstância, a totalidade da sua remuneração, mesmo que isso não implique para si um prejuízo económico. Ironicamente, retira-se assim ao intermediário a possibilidade de reagir autonomamente aos preços no mercado: a lei estabelece um garrote à livre concorrência, que não pode deixar de causar a máxima perplexidade.

Finalmente, no RCCG introduz-se uma nova cláusula relativamente proibida nas relações entre empresários ou entidades equiparadas, através da qual, consoante o quadro negocial padronizado, passam a ser proibidas as cláusulas contratuais gerais que estabeleçam, a favor de quem as predisponha, comissões remuneratórias excessivas ou discriminatórias em função da nacionalidade ou do local de estabelecimento da contraparte. Fica por saber se estas alterações são compatíveis com o nível de harmonização já logrado pelo direito da União.

Estas modificações entram em vigor no dia 1 de janeiro de 2022, o que é já amanhã, pelo que importa começar já a preparação para a mesma, dada a sua novidade, no caso das alterações ao regime das PIRC e ao RCCG, e ao seu impacto previsível. E como estas cláusulas de paridade de preços amplas não são problemáticas apenas no setor do turismo, operadores de outros setores também devem refletir sobre as mesmas, visto que as alterações legislativas em causa as colocam sob a luz intensa dos holofotes mediáticos.

Guilherme Oliveira e Costa | goc@servulo.com

Francisco Marques de Azevedo | fma@servulo.com

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