O mercado voluntário português de carbono em consulta pública
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 10 Fev 2023
Já se encontra em consulta pública, até ao dia 10 de abril de 2023, o projeto de Decreto-Lei que institui o Mercado Voluntário de Carbono em Portugal e que estabelece as regras para o seu funcionamento e que claramente prioriza projetos de sequestro florestal de carbono, envolvendo aqui os chamados territórios vulneráveis (em particular os que dispõem de Planos de Reordenamento e Gestão de Paisagem ou de Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP), áreas integrantes de Zonas de Intervenção Florestal (ZIF) e Baldios, podendo ainda ser consideradas áreas florestais ardidas ou outras áreas que careçam de intervenção, identificadas pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. (ICNF, I.P.), ou pela APA, I.P.).
1. Da regulação do mercado obrigatório ao mercado voluntário: o passo que faltava
Com a implementação do mercado voluntário de carbono, e em linha do que já acontece em outros países do mundo, Portugal pretende antecipar-se num tema que se encontra a ser discutido no seio das instituições europeias (Proposta de Regulamento Europeu que estabelece um quadro de certificação da União relativo às remoções de carbono): ou seja a regulação dos mercados voluntários de carbono que já funcionam de facto, fora do espaço ocupado pelo mercado de carbono obrigatório.
É bem conhecido o atual mercado regulado de carbono europeu, denominado Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE), aplicável apenas a algumas atividades (ex. aviação comercial ou em instalações industriais com utilização intensiva de energia) e que submete os operadores obrigados a requerer um Título de emissão de gases com efeito de estufa (TEGEE) e a adquirir licenças relativas às emissões de GEE resultantes do exercício da sua atividade. É um mercado obrigatório.
As regras agora submetidas a consulta pública referem-se à criação do mercado voluntário: os participantes não estão obrigados à aquisição de licenças nem estão limitados a um número de emissões de carbono. Diferentemente, os incentivos à participação no mercado voluntário são muitas vezes reputacionais numa ótica de green marketing e de responsabilidade social corporativa.
Embora com objetivos últimos convergentes e métodos quantitativos semelhantes (a cada licença CELE ou a cada crédito de carbono corresponde 1 tonelada de carbono), os dois mercados – obrigatório e regulado - não se confundem. Aliás, o projeto de decreto-lei agora em consulta pública veda a utilização dos créditos emitidos ao abrigo do mercado voluntário para o cumprimento de obrigações emergentes de outros regimes europeus e internacionais, como o regime CELE.
Visa-se com este passo dinamizar os projetos de projetos de sequestro de carbono, que passam assim a ter um incentivo económico, que contribuirá para a sua viabilização económica, assim se contribuindo para a descarbonização da economia. Será o caso dos projetos de gestão florestal que são áreas prioritárias. Resta saber – só o mercado o demonstrará - se esse incentivo será suficiente e se não é necessário criar mecanismos públicos de apoios aos investimentos envolvidos nesses projetos.
2. Traços essenciais do mercado voluntário de carbono nacional
Este novo mercado voluntário de carbono promove uma participação inclusiva de diversos agentes, tanto públicos e privados, como individuais ou coletivos, do lado da oferta e do lado da procura. Do lado da oferta, figura como agente do mercado voluntário de carbono o promotor de projeto de mitigação de GEE, que podem ser projetos de redução de emissões ou projetos de sequestro de carbono. Do lado da procura, estão, como agentes do mercado, os indivíduos e as organizações que adquirem esses créditos para efeitos de compensação das suas emissões ou para promoção de políticas a favor da ação climática.
O segundo traço associado a este mercado, e visível nas regras do seu funcionamento (ver infra) é a ideia de mercantilização do carbono ao serviço da proteção e valorização do ambiente, em concreto, de várias componentes ambientais, desde o “ar”, com a mitigação das emissões de GEE, até à “biodiversidade”, com a valorização dos habitats naturais, assegurando ainda uma proteção da “água” e “solo”, através da redução de erosão e aumento do teor da fração orgânica.
A terceira e a quarta marcas estão ligadas à adicionalidade e à permanência. Ambas visam garantir sustentabilidade e efetividade na redução de emissões ou sequestro de carbono, assumindo que estas apenas ocorrem com a concretização do projeto proposto (lógica da adicionalidade), e procurando acautelar a manutenção das emissões sequestradas e salvaguardar eventuais reversões (lógica da permanência).
Já a credibilização do funcionamento deste mercado encontra-se salvaguardada com a sujeição do projeto a avaliações ex ante e ex post, a efetuar por um verificador independente, como medida essencial de combate ao greenwashing. Sem prejuízo destas avaliações, prevê-se ainda a possibilidade de existirem fiscalizações ou a aplicação de penalizações, que vão desde o congelamento dos créditos existentes até à inibição de participação do agente no mercado por um período de 5 anos.
Finalmente, a transparência, erigida como um dos princípios fundamentais e também ao serviço da credibilização, é assegurada com o acesso público à informação relativa às atividades desenvolvidas pelos intervenientes no mercado, bem como evitando a dupla contagem de redução de emissões de GEE ou sequestro de carbono.
3. O funcionamento do mercado voluntário
Sobre o regime do seu funcionamento – que é denso e relativamente extenso – ficam aqui breves notas sobre alguns dos pontos mais relevantes:
1. Apresentação de uma proposta de projeto pelo promotor de projeto de mitigação de GEE: deve obedecer à metodologia de carbono aplicável e demonstrar como é que serão cumpridos os critérios de elegibilidade, método de quantificação, identificando as externalidades, início de implementação, plano de monitorização do projeto, bem como riscos de reversão de emissões e respetivas medidas de mitigação.
As metodologias de carbono a considerar no relatório de projeto não estão ainda fixadas. Serão desenvolvidas por uma comissão técnica de acompanhamento coordenada pela APA e aprovadas pela APA (embora no caso de projetos de sequestro florestal, a APA deva articular-se com o ICNF para essa aprovação). Mas é bem possível que venham a ter em consideração o conjunto de critérios de qualidade (Critérios QU.A.L.ITY) definidos na Proposta de Regulamento Europeu que estabelece um quadro de certificação da União relativo às remoções de carbono, de 20 de novembro de 2022, da Comissão Europeia, caso esta venha a ser aprovada.
2. Validação: previamente ao registo do projeto na plataforma eletrónica, o projeto deverá ser sujeito a um processo de validação inicial, avaliação ex ante, por um verificador independente, devidamente qualificado, em conformidade com critérios a estabelecer em portaria.
3. Monitorização e reporte: os projetos devem ser monitorizados pelos próprios promotores, nos termos previstos na metodologia aplicável, apresentando relatórios de monitorização para esse efeito.
4. Verificação: o projeto também será sujeito a um processo de verificação, avaliação ex post, por verificador independente, sem que seja esclarecido quem é, ou que requisitos se aplicam, o verificador independente.
5. Emissão dos Créditos de Carbono: serão gerados na sequência de um processo de validação ou de verificação. Os créditos de carbono são (i) transacionáveis, devendo os fluxos de créditos entre os agentes de mercado ser objeto de registo na plataforma eletrónica gerida pela APA e (ii) são válidos por tempo indeterminado.
Há dois tipos legais de Créditos de Carbono:
a) Os Créditos de Carbono Futuros (CCF): os créditos gerados no momento zero do projeto (previamente à sua implementação) com base numa estimativa validada por um auditor independente, num montante que não exceda os 10 % dos créditos totais previstos gerar durante a vida do projeto; esta percentagem pode não ser suficiente para contribuir para a viabilização do investimento inicial.
b) Créditos de Carbono Verificados (CCV) gerados após uma efetiva redução de emissões de GEE ou sequestro de carbono pelo projeto devidamente verificada por auditor independente.
Prevê-se ainda a figura do Créditos de Carbono +, ou seja, os que resultem de projetos que além do sequestro de carbono incorporem “significativos benefícios adicionais ao nível da biodiversidade e do capital natural” – não sendo, contudo, claro que vantagens estão associadas a estes Créditos de Carbono +.
6. Reversão de emissões: ocorre quando se verifica que o volume líquido de carbono sequestrado num momento é inferior ao mesmo volume determinado num momento anterior); são cancelados os créditos de carbono já emitidos e não transacionados, na proporção da reversão ocorrida.
a) Se essa reversão for intencional é exigível ao promotor a reposição dos créditos equivalentes ao volume de emissões revertidas ou implementar mais projetos de sequestro de carbono aos quais são descontados e cancelados os créditos gerados num montante equivalente às emissões que tenham sido intencionalmente revertidas.
b) Já a reversão não intencional encontra-se salvaguardada por uma “bolsa de garantia” para a qual revertem 20 % dos créditos de carbono emitidos pelos projetos de sequestro de carbono (ou 10 % quanto aos projetos desenvolvidos nas Áreas Integradas de Gestão da Paisagem). O grande desafio irá passar pela concretização do que poderá ser efetivamente considerado reversão intencional, sendo que muitas poderão ser as causas dessa reversão, desde incêndios florestais ao corte de árvores ou à simples rotação de culturas.
É sobre este regime que todos são convidados a participar, aportando a sua visão, contribuindo para melhorias do regime, que será depois fechado após o encerramento da consulta pública.
Ana Luísa Guimarães | alg@servulo.com
Catarina Pita Soares | csg@servulo.com
João Tomé Pilão | jtp@servulo.com
Marco Gamaliel Alves | mga@servulo.com