O Regulamento dos Mercados Digitais (“Digital Markets Act”) entra hoje em vigor: considerações gerais
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 01 Nov 2022
Enquadramento
Há cerca de duas semanas atrás, a 12 de outubro, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o Regulamento das Plataformas Digitais. Este regulamento entra em vigor hoje, a 1 de novembro, mas será apenas plenamente aplicável a partir de 2 de maio de 2023.
No quadro da globalização, da massificação do uso de smartphones, da internet de alta velocidade, dos algoritmos e inteligência artificial (IA), as tecnologias digitais têm sido responsáveis por uma rápida revolução da nossa sociedade, bem como do funcionamento dos mercados.
A COVID-19 contribuiu para uma crescente dependência de serviços online, que contribuíram para que as plataformas digitais se tornassem ainda mais poderosas. Diversos tipos de atividades (p. ex., fazer compras, estudar, trabalhar) mudaram do formato físico para o online. Desta forma, um pequeno número de plataformas digitais manteve ou reforçou posições de domínio no mercado da União Europeia (UE), por vezes à custa de condutas abusivas (art. 102.º do TFEU).
Esta situação tem gerado entropias e disrupção, na medida em que a lei é, frequentemente, mais lenta a adaptar-se de forma a fazer face aos potenciais efeitos negativos dos serviços digitais. Embora as plataformas ofereçam serviços inovadores e com custo baixo para os utilizadores, as mesmas criam, simultaneamente, barreiras à entrada de novos competidores no mercado.
A legislação tem sido chamada a resolver múltiplas questões, como condutas anti concorrenciais, bem como para resolver outras questões jurídicas, nomeadamente a redução ou enfraquecimento da segurança laboral, a evasão fiscal, a proteção da privacidade e compliance com as normas em vigor.
Para assinalar a importância deste desafio regulamentar a nível da UE, a Comissão Europeia (CE) nomeou, pela primeira vez, uma Comissária, Margrethe Vestager, especificamente encarregada da prioridade política de uma "Europa Apta para a Era Digital". Juntamente com a Proposta do Regulamento dos Serviços Digitais (PDSA), o Regulamento dos Dados, o Regulamento de Governação de Dados, e a Proposta de Regulamento da Inteligência Artificial, o Regulamento dos Mercados Digitais vem regular os mercados e as plataformas digitais.
A Proposta de Regulamento dos Serviços Digitais (PDSA): aspetos chave e diferenças
Antes de nos debruçarmos sobre o Regulamento dos Mercados Digitais (DMA), é importante compará-lo com a recente Proposta de Regulamento dos Serviços Digitais (PDSA).
A PDSA aplica-se a todos os “serviços intermediários”, enquanto que o âmbito de aplicação do DMA está reduzido aos “serviços essenciais de plataforma” (core platform services, em inglês) oferecidos pelos “controladores de acesso” (gatekeepers, em inglês). A PDSA estabelece obrigações para serviços digitais que atuam como intermediários, ligando consumidores a bens, serviços e conteúdos.
A PDSA estabelece um quadro legal sólido de transparência e responsabilização para as plataformas digitais, ajuda a proteger os utilizadores e os direitos fundamentais online, estatuindo um enquadramento legal uniforme na UE.
Esta regulação endereça os potenciais perigos passíveis de ser causados por plataformas online de elevada dimensão (VLOPs - very large online platforms, em inglês) e a fim de prevenir riscos, estatui obrigações adicionais para estas plataformas.
O quadro que se segue sumariza as principais diferenças entre o DSA e o DMA.
O Regulamento dos Mercados Digitais (DMA)
O objetivo do DMA é criar “mercados digitais justos e abertos”, visando plataformas digitais que atuam como “controladores de acesso” e fornecer um quadro jurídico harmonizado, criando segurança jurídica para as empresas e, ao mesmo tempo, combatendo a fragmentação regulatória na UE.
O DMA complementa o direito da concorrência a nível europeu e nacional. Trata-se de regulamentação setorial sob a forma de direito secundário da UE. O Regulamento combate práticas desleais praticadas por “controladores de acesso” que ou não estão inseridas nas regras de concorrência existentes da UE ou que nem sempre conseguem ser eficazmente combatidas por essas regras, devido à natureza e consequências sistémicas dessas práticas. O DMA minimizará assim os efeitos estruturais prejudiciais destas práticas desleais ex-ante, sem limitar a possibilidade da UE de intervir ex-post, através da aplicação das regras de concorrência existentes.
Conforme anteriormente referido, o DMA não se aplica a todas as plataformas digitais, mas apenas àquelas qualificadas como “serviços essenciais de plataforma”. Os serviços essenciais de plataforma incluem serviços tais como motores de busca, navegadores web, assistentes virtuais, plataformas de partilha de vídeo, etc.
O âmbito de aplicação do DMA restringe-se ainda a plataformas que sejam designadas como “controladores de acesso”. O “controlador de acesso” deve (a) ter uma dimensão que tenha impacto no mercado interno da UE; (b) fornecer um “serviço essencial de plataforma” que seja uma importante ligação para que os utilizadores comerciais cheguem aos utilizadores finais (consumidores); e (c) gozar de uma posição enraizada e duradoura no mercado.
As plataformas que satisfaçam estes critérios são consideradas “controladores de acesso”, mas podem ilidir a presunção e apresentar argumentos para demonstrar que, devido a circunstâncias excecionais, não devem ser designadas como “controladores de acesso”, apesar de cumprirem todos os requisitos.
Adicionalmente, a CE pode abrir uma investigação para avaliar a situação específica de uma dada plataforma e decidir designar a plataforma como “controladora de acesso”, ainda que esta não cumpra os parâmetros quantitativos. A título de exemplo, a CE pode designar um “controlador de acesso” na medida em que seja previsível que virá a desfrutar de uma posição enraizada e duradoura num futuro próximo.
Cabe à CE garantir o cumprimento e aplicação do regulamento. Este enforcement centralizado adequa-se à atividade transnacional dos “controladores de acesso” e ao objetivo do DMA de fornecer um quadro unificado e com segurança jurídica para as plataformas na UE. Não obstante, a CE cooperará, simultaneamente, com as Autoridades Nacionais Competentes (ANC) para a aplicação do Regulamento.
O DMA confere à CE o poder de, entre outros, solicitar informação às plataformas e ANC; realizar entrevistas e recolher depoimentos; efetuar as inspeções necessárias às plataformas; ordenar medidas provisórias a um “controlador de acesso”; e monitorizar a implementação e o cumprimento efetivos do DMA (nomeadamente através da nomeação de auditores externos).
Obrigações e proibições impostas aos “controladores de acesso”
O DMA estabelece um sistema de proibições e obrigações para os “controladores de acesso”. Alguns exemplos são:
- Proibição de restringir, a nível técnico ou por outra forma, a capacidade dos utilizadores finais para mudarem e subscreverem diferentes aplicações informáticas (apps) e serviços;
- Proibição de tratamento mais favorável, em termos de classificação e indexação e do rastreamento associados dos serviços e produtos propostos pelo próprio ou produtos semelhantes de um terceiro;
- Proibição de tornar as condições de cessação desproporcionadas ou difíceis de exercer;
- Obrigação de facilitar a desinstalação de apps e permitir alterações às predefinições;
- Obrigação de permitir a interoperabilidade;
- Obrigação de assegurar a portabilidade dos dados;
- Obrigação de comunicação sobre aquisições/concentrações de empresas;
- Obrigação de auditoria externa.
O não cumprimento dos requisitos de transparência e cooperação pode resultar em coimas de até 1% do volume de negócios total a nível global da plataforma no exercício anterior. A CE pode igualmente impor sanções pecuniárias compulsórias periódicas aos “controladores de acesso”, quando apropriado, e associações de empresas, até 5% do volume de negócios diário médio a nível mundial no exercício precedente.
Os “controladores de acesso” podem enfrentar sanções mais pesadas por violação do DMA, nomeadamente coimas de até 10% do seu volume de negócios anual global. A coima pode atingir 20% do volume de negócios anual global, em caso de reincidência das infrações. Se um “controlador de acesso” violar as regras três ou mais vezes, a CE pode impor uma proibição temporária de concentrações ou impor requisitos de alienação ou fragmentação de plataformas.
Considerações finais
Um aspeto que tem sido criticado no DMA é a inflexibilidade das proibições previstas. Os artigos 5.º, 6.º e 7.º contêm um numerus claususus de regras per se. As regras per se não exigem a prova dos efeitos prejudiciais de uma conduta, mas proíbem essa conduta enquanto tal.
Por um lado, este aspeto aumenta a segurança jurídica. Por outro lado, as regras per se podem proibir uma conduta que não provoque efeitos negativos (“falsos positivos”), bem como podem não considerar uma conduta anti concorrencial enquanto tal (“falsos negativos”). Ademais, estas regras podem ser consideradas uma abordagem rígida, impondo um “one-size-fits-all” a “controladores de acesso” com modelos de negócio consideravelmente diferentes. Contudo, a intrusividade destas obrigações deve ser sopesada tendo em conta a capacidade demonstrada pelos “controladores de acesso” para se subtraírem às obrigações regulamentares.
O DMA prevê “remédios” gerais (remedies), enquanto o direito da concorrência impõe medidas de reparação específicas para cada caso. Por conseguinte, as previsões gerais do DMA poderão ser, em certa medida, limitadas em comparação com alguns “remédios” de direito da concorrência. Explorar as oportunidades criadas pela coexistência de ambos é o caminho a seguir pela CE.
O DMA só será plenamente eficaz mediante enforcement e compliance adequados. A CE será o único garante do cumprimento do DMA. No entanto, têm sido manifestadas preocupações relativas à capacidade da CE desempenhar esta tarefa, nomeadamente devido à insuficiência de recursos humanos e técnicos, incluindo peritos digitais.
O sucesso do DMA dependerá, em grande medida, da sua aplicação efetiva, o que significa que a tomada de decisões atempada, a capacitação dos recursos humanos e técnicos, bem como o compliance, serão fatores-chave.
Apesar de todas as críticas, o DMA propõe-se enfrentar os atuais desafios digitais impondo regras rígidas, criando novos organismos (tais como o Comité Consultivo dos Mercados Digitais e o Grupo de alto nível), prevendo multas significativas (até 20% do volume de negócios anual global por infracções repetidas), impondo requisitos de interoperabilidade, proibindo a auto-preferência (self-preferencing) e restrições de switching, criando obrigações para permitir a desinstalação de apps e alterações às predefinições, bem como uma obrigação de auditoria, entre outras.
O DMA marca um importante ponto de viragem e constitui um instrumento normativo muito necessário. Cria várias obrigações para os “controladores de acesso”, assinalando uma nova era de regulação digital na UE que irá fomentar um novo tipo de interação entre a aplicação do direito da concorrência e regulação ex-ante. Tal interação exigirá um controlo contínuo e uma análise crítica permanente.
Miguel Máximo dos Santos | mxs@servulo.com