O Novo Regime de aplicação dos Fundos Europeus
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 29 Mar 2023
No passado dia 23 de março, entrou em vigor o regime geral de aplicação das verbas do Portugal 2030. Entre outras matérias, o Decreto-Lei n.º 20-A/2023 vem estabelecer as obrigações dos beneficiários destes fundos europeus.
O novo regime jurídico aplica-se, durante o período compreendido entre 2021 e 2026, às operações financiadas pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), pelo Fundo Social Europeu Mais (FSE+), pelo Fundo de Coesão (FC), pelo Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos, das Pescas e da Aquicultura (FEAMPA) e pelo Fundo para Uma Transição Justa (FTJ), bem como pelo Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI).
O regime é constituído pela legislação europeia aplicável aos fundos europeus; pelo modelo de governação destes fundos; pelo novo regime de aplicação dos fundos e pelas respetivas adaptações às regiões autónomas; pelas portarias que aprovam a regulamentação específica de aplicação dos fundos; pelos regulamentos administrativos que definem normas de cada procedimento; e pelos avisos para apresentação de candidaturas.
Estas disposições são, entretanto, complementadas pelas deliberações, pelas orientações técnicas e pelas orientações de gestão das entidades competentes.
Relativamente ao regime de aplicação dos FEEI (Decreto-Lei n.º 159/2014), o novo quadro normativo apresenta várias novidades.
Desde logo, enquanto aquele decreto-lei adotava o concurso como “regime-regra de apresentação de candidaturas” e só admitia a apresentação de candidaturas por convite em casos excecionais, o novo regime vem consagrar o procedimento de pré-qualificação. Este surge – a par do concurso – como regime preferencial, ficando o convite reservado para “casos devidamente fundamentados, nomeadamente sempre que as operações apenas possam ser executadas pelas entidades convidadas”.
As candidaturas continuam a poder ser apresentadas em parceria e em copromoção. Mas o novo decreto-lei também admite a apresentação de candidaturas em conjunto, por uma ou mais entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos de natureza associativa, visando a implementação de um programa estruturado de intervenção para um conjunto de entidades de um mesmo território, setor de atividade, fileira ou agregado económico ou social.
Além de deveres próprios dos beneficiários, o novo regime consagra obrigações aplicáveis, em geral, a todas as entidades envolvidas na implementação de fundos europeus. Estas devem, nomeadamente, cumprir critérios sociais e contribuir para preservar, proteger e melhorar a qualidade do ambiente, tendo em conta o princípio do poluidor-pagador e o princípio «não prejudicar significativamente».
Na prática, a aplicação destes princípios pode revelar-se complexa.
Por um lado, o princípio do no significant harm não foi objeto de uma densificação normativa nem de um lastro jurisprudencial que facilite a exclusão de candidaturas a fundos europeus com base na sua não observância.
Por outro lado, e o que é mais relevante, uma aplicação estrita do princípio do poluidor-pagador pode dificultar a atribuição de verbas a projetos que, em tese, justificariam financiamento. A título de exemplo, o FTJ tem em vista a cessação de atividades poluentes, através do financiamento das entidades que as desenvolvem. Mas o princípio do poluidor-pagador determina que a redução de emissões deve ser feita através da penalização destas entidades. Afinal, estes vetores normativos carecem de conciliação.
Uma das principais novidades do Decreto-Lei n.º 20-A/2023 é a previsão de várias normas de proibição de duplo financiamento.
O diploma estipula que o custo elegível total de uma operação não pode ser cofinanciado em qualquer outra operação do mesmo fundo europeu, de outro fundo europeu, ou de outro instrumento da União Europeia. E estabelece que a aferição do duplo financiamento é efetuada, designadamente, através da demonstração, pelos beneficiários, de que a operação e as respetivas despesas não foram objeto de cofinanciamento. Neste sentido, os beneficiários não podem apresentar a “mesma candidatura, no âmbito da qual ainda esteja a decorrer o processo de decisão ou em que a decisão sobre o pedido de financiamento tenha sido favorável, exceto nas situações em que tenha sido apresentada desistência”.
Mas a amplitude com que a proibição do duplo financiamento é consagrada no novo regime contrasta – e não pode deixar de ser interpretada em conformidade – com o direito europeu. O Regulamento Financeiro da UE dispõe que i) os mesmos custos não podem, em caso algum, ser financiados duas vezes pelo orçamento europeu, e que ii) cada ação só pode dar lugar à concessão de uma subvenção a cargo do orçamento e a favor de um mesmo beneficiário, salvo autorização em contrário no respetivo ato de base. Ora, o Regulamento das Disposições Comuns – diretamente aplicável aos fundos do Portugal 2030 – esclarece que, “para otimizar o valor acrescentado dos investimentos financiados na totalidade ou em parte através do orçamento da União, deverão procurar-se sinergias (…) e a possibilidade de combinar financiamentos provenientes de diferentes instrumentos da União na mesma operação, desde que seja evitado o duplo financiamento”.
Assim, o direito europeu parece admitir, expressamente, que uma mesma ação seja financiada por fundos europeus distintos, desde que não haja um efetivo financiamento dos mesmos custos.
Enfim, em caso de incumprimento de obrigações pelos beneficiários de fundos europeus, mantém-se o princípio de responsabilidade subsidiária dos titulares dos seus órgãos de direção, de administração ou de gestão, incluindo quanto à restituição de montantes indevidamente recebidos ou não justificados. Também este princípio justifica uma aplicação casuística e a consideração de toda a ordem jurídica em vigor.
O novo regime assenta numa tensão dialética entre a “simplificação como princípio primordial” e a necessidade de “correta utilização dos fundos”. A articulação deste binómio será determinante para a boa administração do Portugal 2030, ou seja, para a eficiência, economicidade e celeridade da execução deste pacote de fundos europeus.
Daniel Castro Neves | dcn@servulo.com