O Novo Regime de Integração de Obras de Arte em Obras Públicas Relativas a Infraestruturas e Equipamentos (Decreto-Lei n.º 96/2021, de 12 de Novembro)
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 15 Nov 2021
1. Através do Decreto-Lei n.º 96/2021, de 12 de Novembro, os donos de obra públicas passaram a ficar submetidos a uma vinculação acrescida na preparação de obras que incidam sobre infraestruturas e equipamentos públicos. O legislador nacional pretende utilizar as empreitadas de obras públicas para a divulgação das obras de arte nos espaços públicos, aproveitando as obras públicas como instrumento de disseminação da arte e da cultura em zonas de fruição pelo público.
No fundo, trata-se de uma solução paralela àquela que procura instrumentalizar os contratos públicos como métodos de prossecução de políticas estratégicas, tal como sucede no plano social, laboral ou ambiental.
Para o efeito, os procedimentos relativos a contratos de empreitada ou concessão de obras públicas de valor igual ou superior a € 5.000.000 que incidam sobre infraestruturas e equipamentos devem incluir regras específicas nos respectivos cadernos de encargos que se destinam a vincular os adjudicatários (empreiteiros ou concessionários) a integrar nas empreitadas novas obras de arte (com exclusão de obras de arquitectura), tal como definidas nas alíneas f) a j) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Essa iniciativa é meramente facultativa no caso de contratos de valor inferior ao referido limiar (cfr. artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 96/2021).
2. Estas vinculações são afastadas no âmbito de procedimentos de ajustes directos e consultas prévias, mas também nos demais procedimentos em que a obra pública (i) seja objectivamente inapta a integrar obras de arte, nomeadamente obras de conservação, de reabilitação, de demolição ou de restauro; ou (ii) determine, em razão da sua localização, a insusceptibilidade de fruição pelo público de obras de arte (cfr. n.º 2 do artigo 4.º).
Para o primeiro caso, é excepcionada a generalidade das empreitadas que incidem sobre obras já pré-existentes, ficando a entidade adjudicante sujeita a um dever simples de fundamentação que permita confirmar que os condicionamentos já presentes na obra em causa impedem a integração de uma intervenção artística.
Para o segundo caso, apesar de a lei se referir a uma localização “no subsolo”, está em causa uma indicação meramente exemplificativa, já que abundarão os casos em que as infraestruturas estarão situadas em lugares inacessíveis ao público, tornando inútil o investimento numa obra de arte.
3. Do ponto de vista subjectivo, são entidades adjudicantes vinculadas a este regime o Estado, os institutos públicos e as empresas públicas integradas no setor empresarial do Estado, na qualidade de entidades adjudicantes (cfr. n.º 1 do artigo 3.º). Qualquer outra entidade adjudicante pode, por sua iniciativa, aplicar também este regime, ainda que este lhe não possa ser imperativamente imposto por lei, tendo em conta a garantia constitucional da autonomia regional, autárquica, universitária ou associativa, consoante os casos (cfr. n.º 3 do artigo 3.º).
Situação diferente é a dos concessionários que se encontrem submetidos a regras de contratação pública, os quais ficam vinculados a este regime, mas sendo ressalvados os “casos em que da sua aplicação possa resultar uma reposição do equilíbrio financeiro do contrato de concessão em vigor” (cfr. n.º 2 do artigo 3.º).
4. Com este âmbito assim delimitado, pretende o legislador que a entidade adjudicante imponha no caderno de encargos da empreitada ou concessão a incorporação, na obra pública, de uma ou mais obras de arte cujo valor deve corresponder a 1% do preço base, salvo decisão fundamentada da entidade adjudicante que determine um valor superior.
Este valor fica limitado ao montante de € 1.000.000, salvo, novamente, uma decisão fundamentada da entidade adjudicante. No caso de não fixação do preço base no caderno de encargos, o valor é fixado pela entidade adjudicante, sendo igual ou superior a € 50.000.
Nesse valor estão já incluídos todos os custos com a criação e concepção da obra de arte, designadamente os custos dos suportes físicos das obras de arte e dos trabalhos para a sua integração na obra pública (cfr. artigo 5.º).
Tal como se esclarece no próprio preâmbulo do diploma, a intenção legislativa ao associar o valor da obra de arte ao preço base consiste em evitar que ele fique dependente do preço constante de cada proposta – sendo, assim, subtraído a qualquer impacto das escolhas concorrenciais do mercado –, o que também permite aos concorrentes conhecerem, desde o momento de elaboração das propostas, qual é o valor que é atribuído à obra de arte.
5. Contudo, este regime especial limita-se a obrigar à integração da obra de arte na empreitada, sem pretender regular o procedimento de escolha do artista e a determinação da sua identidade ou do tipo de obra a adquirir.
Previsivelmente, essa escolha pode resultar do fundamento material de ajuste directo previsto no artigo 24.º, n.º 1, alínea e), subalínea i), do CCP. Isto não prejudica que a entidade adjudicante solicite uma recomendação a uma comissão consultiva de obras de arte em obras públicas criada junto do Ministério da Cultura, nos termos do artigo 7.º, a qual recebe como “missão coadjuvar as entidades adjudicantes na escolha do tipo de obras de arte e dos artistas”, incluindo “a área artística ou a tipologia das obras de arte a integrar na obra pública”, bem como “artistas que concebam, produzam e/ou executem obras de arte adequadas a integrar na obra pública”.
A título excepcional, pode a entidade adjudicante transferir essa responsabilidade de escolha para um co-contratante, na medida em que o caderno de encargos do procedimento relativo ao serviço de elaboração do projecto (ou à empreitada, no caso da modalidade de concepção-construção) pode atribuir ao projectista a responsabilidade de escolher o artista autor da obra (cfr. n.º 2 do artigo 6.º). Justamente em virtude de estar em causa uma escolha com um elevado grau de subjectividade – passível, como referido, de fundamentar um ajuste directo mesmo no caso de a escolha caber à entidade adjudicante –, a lei considera que não é necessário predefinir os critérios de escolha do artista pelo projectista.
No entanto, insista-se que esta constitui uma solução excepcional, já que a lei pressupõe que aquela escolha incumba, em princípio, directamente à entidade adjudicante (cfr. n.º 1 do artigo 6.º).
6. Daqui resulta que é precisamente o adjudicatário (empreiteiro ou concessionário) que recebe a responsabilidade de materialização das condições que permitirão a integração da obra de arte na obra pública. Na prática, tal como já ocorreu noutros sectores, a lei promove uma transferência da responsabilidade primária que a Administração Pública assume na disseminação da arte e da cultura, nos termos dos artigos 73.º, n.º 3, e 78.º, n.º 2, da Constituição, para agentes privados, que ficam submetidos ao dever contratual acessório de adoptar todas as iniciativas necessárias – incluindo o próprio relacionamento com o artista – para finalizar a intervenção artística.
Para isso, e salvo no referido caso excepcional em que a escolha do artista e da obra de arte é cometida ao próprio adjudicatário, tem a entidade adjudicante de inserir, como cláusulas dos cadernos de encargos dos procedimentos relativos às empreitadas ou aos serviços de elaboração dos projectos, exigências imperativas (não submetidas à concorrência) que predefinem o tipo de obra de arte e o artista que tiver sido previamente escolhido (cfr. n.º 1 do artigo 6.º).
O caderno de encargos precisará de vincular o empreiteiro ou concessionário a subcontratar o artista – tratando-se, pois, de um caso de subcontratação vinculada – e a assegurar o cumprimento das especificações predefinidas pela entidade adjudicante (cfr. n.º 3 do artigo 6.º).
Isto implica que o empreiteiro ou concessionário terá de incluir os custos da subcontratação dentro do seu próprio preço, de modo a repercuti-los sobre a entidade adjudicante.
Em consequência disso, tem de entender-se que o custo inerente à subcontratação tem de passar a ser incluído entre os custos legais que precisam de ser ponderados para efeitos da identificação de preços anormalmente baixos, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do CCP. Com efeito, na medida em que a lei é hoje (cada vez mais) clara quanto à proibição de apresentação de propostas que contenham preços deficitários, a entidade adjudicante fica vinculada a iniciar um subprocedimento de verificação da anomalia do preço proposto no caso de verificar que este não contempla os custos que o adjudicatário deve suportar com o cumprimento das obrigações decorrentes do Decreto-Lei n.º 96/2021.
Essa conclusão é reforçada pela referida circunstância de o valor da obra de arte ficar dependente do preço base predefinido pela entidade adjudicante, e não do preço da proposta efectivamente adjudicada – não sendo influenciado pelo comportamento concorrencial –, o que significa que cada uma das propostas tem de contemplar e cobrir o mesmo custo para esta vertente da obra, independentemente de qual seja o preço global escolhido pelo concorrente.
Finalmente, daqui também resulta que a entidade adjudicante, não obstante ter sido legalmente forçada a transferir esta responsabilidade de subcontratação para o adjudicatário, não pode deixar de adoptar especiais cautelas na fiscalização da diligência deste último, tendo presente que das correctas relações entre o empreiteiro ou concessionário e o artista dependerá a conclusão da intervenção artística exigida pela lei e a devida disponibilização da obra de arte para fruição do público.
Pedro Fernández Sánchez | pfs@servulo.com