Novas regras no âmbito da legislação financeira nacional
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 06 Set 2023
No passado dia 9 de agosto de 2023, entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 66/2023 de 8 de agosto (“Decreto-Lei n.º 66/2023”), que visa assegurar a plena execução no ordenamento jurídico português de um conjunto de Regulamentos da União Europeia relativos a serviços financeiros, alterando vários diplomas nacionais[1].
1. Decreto-Lei n.º 40/2014 (EMIR)
O Decreto-Lei n.º 66/2023 prevê alterações ao Decreto-Lei n.º 40/2014, de 18 de março, que assegura a execução, na ordem jurídica interna, do Regulamento (UE) n.º 648/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo aos derivados do mercado de balcão, às contrapartes centrais e aos repositórios de transações (Regulamento EMIR, da designação inglesa European Market Infrastructure Regulation), bem como dos atos delegados e atos de execução que o desenvolvem.
As alterações efetuadas ao Decreto-Lei n.º 40/2014 espelham uma redução nas obrigações de supervisão do Banco de Portugal, eliminando a referência às “sociedades financeiras” e promovendo uma extensão nos deveres de supervisão da CMVM, passando a fazer referência a organismos de investimento coletivo e respetivas sociedades gestoras, a empresas de investimento, a centrais de valores mobiliários e, enquanto contrapartes financeiras no âmbito do Regulamento OFVM, a contrapartes centrais.
2. Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica (“RJSPME”)
No que diz respeita ao RJSPME, não existem alterações substanciais ao nível material, sendo que na sua grande maioria estas alterações têm como objetivo adaptar o direito interno ao Regulamento (UE) 2021/1230 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de julho de 2021. Dizem respeito ao regime estabelecido quanto às reclamações para os prestadores de serviços de pagamento (artigo 146.º), bem como para o Banco de Portugal (artigo 147.º), resolução alternativa de litígios (artigo 148.º), fiscalização pelo Banco de Portugal (artigo 149.º).
Relativamente à reclamação para prestadores de serviços de pagamento, a nova redação esclarece que estes devem assegurar e disponibilizar “mecanismos adequados de tratamento das reclamações que lhes sejam diretamente apresentadas relativamente ao cumprimento da legislação da União Europeia referida no n.º 2 do artigo 1.º”, sendo que ao artigo 1.º é acrescentado ao leque de regulamentos europeus o Regulamento (UE) 2021/1230, relativo aos pagamentos transfronteiriços na União.
No mesmo sentido, o artigo 147.º, relativo às reclamações para o Banco de Portugal, bem como o artigo 148.º, relativo à resolução alternativa de litígios e o artigo 150.º, relativo às infrações, são revistos de forma a incorporar a referência ao Regulamento (UE) 2021/1230.
Por fim, o artigo 149.º, relativo à fiscalização pelo Banco de Portugal, para além da alusão ao Regulamento (UE) 2021/1230, inclui, ainda, no escopo de atuação desta autoridade as entidades que prestam serviços de conversão cambial através de um caixa automático ou num ponto de venda.
3. Regime Jurídico do Financiamento Colaborativo
O Decreto-Lei n.º 66/2023 procede à alteração da Lei n.º 102/2015, de 24 de agosto, que estabelece o Regime Jurídico do Financiamento Colaborativo (“RJFC”), com a finalidade de assegurar a articulação do direito nacional com o Regulamento (UE) 2020/1503[2], o qual estabelece as regras relativas à prestação de serviços de financiamento colaborativo de capital e de empréstimo na União Europeia.
Neste âmbito, procede-se ao alinhamento do conceito de financiamento colaborativo previsto no artigo 2.º RJFC com o disposto no mencionado diploma europeu. De igual modo, ajusta-se o catálogo das entidades que podem ser autorizadas pela CMVM a prestar serviços de financiamento colaborativo de capital e de empréstimo, incluindo-se as instituições de crédito, empresas de investimento, instituições de moeda eletrónica, prestadores de serviços de pagamento e outras sociedades comerciais (artigo 4.º, n.º 2 do RJFC). Em matéria de informação aos investidores, o artigo 17.º do RJFC é alterado de modo a prever, nomeadamente, os idiomas aceites para a redação das fichas de informação fundamental (“FIF”) e comunicações comerciais, assim como o regime de responsabilidade pelos danos causados a investidores pela violação de deveres de informação pré-contratuais e contratuais. Anota-se que os requisitos e conteúdo da FIF encontram-se definidos no Regulamento (UE) 2020/1503.
São também aditadas disposições ao RJFC que regulam, por um lado, o financiamento colaborativo de donativo ou recompensa[3] e, por outro lado, o financiamento colaborativo de capital ou empréstimo[4]. Relativamente a este último, a CMVM mantém-se como autoridade competente para a regulamentação, supervisão e fiscalização nesta matéria (artigo 21.º-A, n.º1), passando a ter de solicitar um parecer ao Banco de Portugal previamente à decisão de autorização para a prestação de serviços de financiamento colaborativo de capital ou empréstimo, quando que se trate de uma entidade sujeita à supervisão do Banco de Portugal (artigo 16.º-A, n.º 1).
4. Regime piloto das infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído (“DLT”)
Relativamente ao Regulamento (UE) 2022/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2022, relativo a um regime-piloto para as infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído (“Regulamento DLT”), o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 66/2023 aprova, em anexo, o Regime de Execução do Regulamento DLT.
O artigo 2.º do Regime de Execução do Regulamento DLT delimita o âmbito da atividade dos operadores de infraestruturas de mercado baseadas em DLT, os quais, nos termos do Código dos Valores Mobiliários, estão habilitados, designadamente, a prestar serviços de registo e depósito de instrumentos financeiros DLT, a gerir sistemas de negociação multilateral e sistemas de liquidação de valores mobiliários, a receber, transmitir e executar ordens por conta de outrem, a gerir carteiras por conta de outrem e a negociar por conta própria.
De registar, igualmente, que o artigo 3.º do Regime de Execução do Regulamento DLT isenta o cumprimento do disposto no artigo 62.º do Código dos Valores Mobiliários relativamente aos instrumentos financeiros admitidos à negociação em sistema de negociação multilateral DLT. Adicionalmente, permite o registo individualizado dos instrumentos financeiros DLT através das modalidades de registo previstas no artigo 61.º do Código dos Valores Mobiliários (com exceção das situações previstas no artigo 63.º, n.º 1), tendo em vista conciliar a desintermediação financeira potenciada pela adoção de DLT com o sistema de registo de valores mobiliários de âmbito nacional. Anota-se que a CMVM é a autoridade competente para conceder e revogar a autorização específica para operar um sistema de negociação multilateral ou sistema de liquidação de valores mobiliários baseados na DLT, nos termos do Regulamento DLT (artigo 4.º do Regime de Execução do Regulamento DLT).
5. Disposições transitórias e finais
O Decreto-Lei n.º 66/2023 consagra um regime transitório para os gestores de plataformas de financiamento colaborativo, os quais terão de apresentar até ao próximo dia 10 de novembro de 2023 um conjunto de elementos e documentos necessários à verificação do cumprimento dos requisitos previstos no Regulamento (UE) 2020/1503[5], a fim de poderem continuar a prestar tais serviços.
Por fim, o novo diploma procede, ainda, à revogação de uma série de disposições da Lei n.º 102/2015, que estabelece o Regime Jurídico do Financiamento Colaborativo, e à republicação deste diploma, bem como procede à revogação do Decreto Regulamentar n.º 8/2017, de 29 de agosto, que regula os índices de referência no quadro de instrumentos e contratos financeiros ou do desempenho de fundos de investimento[6].
Guilherme Ribeiro Martins | grm@servulo.com
Andreea Babicean | aba@servulo.com
[1] Note-se que o Decreto-Lei n.º 66/2023 também procede à transposição parcial da Diretiva (UE) 2021/2118, relativa ao seguro de responsabilidade civil da circulação de veículos automóveis.
[2] Regulamento (UE) 2020/1503 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de outubro de 2020, relativo aos prestadores europeus de serviços de financiamento colaborativo às entidades, e que altera o Regulamento (UE) 2017/1129 e a Diretiva (UE) 2019/1937.
[3] Cf. artigos 12.º-A, 12.º-B e 12.º-C, aditados à Lei n.º 102/2015, de 24 de agosto.
[4] Cf. artigos 15.º-A, 15.º-B, 16.º-A, 16.º-B, 21.º-A, 21.º-B, 21.º-C e 21.º-D, aditados à Lei n.º 102/2015, de 24 de agosto.
[5] Cf. artigos 10.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 66/2023.
[6] São revogadas as alíneas c) e d) do artigo 3.º, o artigo 5.º, o artigo 7.º, os n.ºs 2 e 3 do artigo 10.º, o artigo 11.º, os artigos 15.º e 16.º, os artigos 18.º a 21.º e o artigo 23.º da Lei n.º 102/2015, de 24 de agosto, na sua redação atual. Cf. artigos 15.º e 16.º alíneas a) e c) do Decreto-Lei n.º 66/2023.