Incoming: a morada única digital e o serviço público de notificações eletrónicas
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 15 Mar 2017
Foi publicada, no passado dia 3 de março, a Lei n.º 9/2017, de 3 de março, diploma através do qual a Assembleia da República autorizou o Governo a aprovar o regime relativo à morada única digital e ao novo serviço público de notificações eletrónicas. Ainda que se trate, por agora, apenas de uma autorização parlamentar, os termos em que define o seu sentido e o conteúdo do projeto de Decreto-Lei autorizado que acompanhou a proposta de Lei correspondente (Proposta de Lei n.º 41/XIII)[1] permitem já antever o essencial das alterações jurídicas que a este respeito se introduzirão em breve no ordenamento jurídico português.
Equivalendo, em termos legais, ao domicílio das pessoas singulares e à sede das pessoas coletivas, a morada única digital corresponde, nos termos da arquitetura do novo regime legal, a um endereço digital único dos cidadãos e das empresas para efeitos de receção de notificações administrativas e fiscais. Pretende-se, deste modo, contrariar a tendência de um relativo espartilhamento dos serviços de notificações eletrónicas que se regista por entre as diversas entidades públicas ‑ ou privadas encarregues da prestação de serviços públicos ‑ da Administração Pública (incluindo os serviços tributários).
Importa sublinhar, sob o ponto de vista dos potenciais notificandos, que:
a) A adesão à morada única digital é, em toda a sua extensão, voluntária;
b) O endereço eletrónico associado à morada única digital pode corresponder a um já pré-existente, disponibilizado por qualquer fornecedor admissível de correio eletrónico;
c) A partir do momento em que adira à morada única digital e com isso fidelize um determinado endereço eletrónico, passa a ser esse o único que serve toda a Administração Pública, não podendo optar o particular por excluir a receção de quaisquer notificações eletrónicas por essa via.
A criação do serviço público de notificações eletrónicas corresponde, por sua vez, à institucionalização da plataforma pública responsável pela garantia da existência do sistema informático de suporte que permitirá comprovar e registar a morada única digital, prevendo-se que ao mesmo possam aderir: (i) todos os serviços, organismos, entidades ou estruturas integradas na administração do Estado ou das autarquias locais que enviem notificações administrativas e fiscais, (ii) as entidades que, nos termos da lei, tenham competência para processas contraordenações e, bem assim, (iii) as entidades prestadoras de serviços públicos essenciais.
Trata-se, também sob este ponto de vista ‑ das entidades aderentes ‑ de uma associação puramente voluntária, a formalizar mediante a celebração de um protocolo com a entidade pública que, nos termos da regulamentação a aprovar, venha a ficar encarregue da gestão do serviço.
Aplicando-se a todos os sujeitos, particulares ou institucionais, que fidelizem à morada única digital um endereço eletrónico, e a todas entidades, públicas ou privadas, que adiram ao serviço público correspondente, o regime em perspetiva serve, no essencial, à regulação dos termos em que se efetuam, e em que se devem considerar efetuadas, as notificações eletrónicas da Administração Pública, com exclusão expressa de citações, notificações ou outras comunicações judiciais.
Neste sentido, a regra mais saliente já prevista no projeto de Decreto-Lei autorizado que se conhece prende-se com o estabelecimento da presunção de que as notificações eletrónicas se consideram efetuadas no quinto dia posterior ao da sua disponibilização na morada digital da pessoa ou instituição a notificar, data essa que deve ser garantida e comprovada pelo próprio serviço público encarregue pela gestão do sistema informático de suporte. A fixação desta presunção não impedirá, no entanto, a demonstração de que, por qualquer motivo não imputável ao notificando, apenas em data posterior se tenha registado a efetiva receção da notificação.
O estabelecimento do regime jurídico da morada única digital e do serviço público de notificações eletrónicas implicará, em termos também já autorizados pela Assembleia da República, alterações a diversos regimes legais, nomeadamente no âmbito tributário: o projeto de Decreto-Lei autorizado que já se conhece antecipa modificações à Lei Geral Tributária, ao CPPT, ao RGIT, ao Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, entre outros regimes.
Importa no entanto sublinhar, ainda a respeito do impacto sistemático do novo regime legal, dois aspetos:
a) Por um lado, o novo sistema público de notificações eletrónicas não parece ter a pretensão de eliminar por substituição o já existente serviço público de caixa postal eletrónica, projetado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/2006, de 13 de abril, materializado através do Decreto-Lei n.º 112/2006, de 9 de junho (cfr. o artigo 4.º) e cuja prestação integra, até 2020, o âmbito da concessão do serviço postal universal entregue à CTT ‑ Correios de Portugal, S.A. Isto significa que o serviço ViaCTT ‑ cuja adesão é obrigatória para o sujeitos passivos do IRC, assim como para os sujeitos passivos enquadrados no regime normal do IVA (n.º 9 do artigo 19.º da LGT) ‑ continuará, nos termos hoje vigentes, em funcionamento, sendo certo que, nos termos agora projetados, o domicílio fiscal passa a integrar quer a caixa postal eletrónica quer ‑ para quem a ela adira ‑a morada única digital.
b) Por outro lado, e pese embora se preveja a prevalência do novo regime sobre “quaisquer outras disposições gerais ou especiais que versem sobre regimes de notificações eletrónicas”, não se perspetiva nenhuma alteração ao Código do Procedimento Administrativo de 2015, diploma que, como é sabido, e ainda que de forma não totalmente clara, veio estabelecer e definir o regime associado às comunicações e notificações administrativas realizadas de forma eletrónica. Na realidade, os artigos 63.º e 113.º do CPA/2015 parecem ter partido do pressuposto de que as comunicações e notificações eletrónicas realizadas pela Administração Pública se deveriam processar através do serviço da caixa postal eletrónica, sendo no entanto certo que, na prática, a vasta maioria das entidades públicas com funções administrativas não aderiu ao serviço ViaCTT, conjugação de circunstâncias que, em último termo, torna relativamente inúteis as disposições do Código sobre a matéria. A aprovação e entrada em vigor do regime da morada única digital e do novo serviço público de notificações eletrónicas significará, por seu turno, a desadequação ‑ ou, pelo menos, a inaplicabilidade ‑ de parte significativa dessas disposições. Basta ter em conta, por exemplo, a diferença relativa à data em que se presume efetuada a notificação eletrónica: dos termos do CPA/2015, pensados para o serviço da caixa postal eletrónica, consta a regra do 25.º dia posterior, em caso de ausência de acesso à caixa postal, importada do atual regime do CPPT (cfr. o n.º 6 do artigo 113.º do CPA e o atual n.º 10 do artigo 39.º do CPPT); do novo regime consta, como se disse, a regra de presunção de notificação no 5.º dia posterior ao do envio da notificação eletrónica, regra essa que, aliás, passará também a valer, para efeitos do serviço da caixa postal eletrónica, no próprio CPPT. Subjacente à não alteração expressa do CPA/2015 parece ter estado a ideia de preservação de um diploma ainda relativamente recente; parece no entanto que, nesta matéria, se imporiam alterações, de modo a (i) clarificar o real âmbito das regras que a este título constam da lei geral do procedimento administrativo e, sobretudo, (ii) harmonizar os regimes.
Aguardando-se, para breve, a aprovação e publicação do Decreto-Lei e da demais regulamentação necessária, é em todo o caso expectável que o novo regime legal venha a entrar em vigor ainda antes do início do Verão; isto apesar de serem conhecidas as reservas da Comissão Nacional de Proteção de Dados sobre a matéria, já expressas no recente Parecer n.º 7/2017, de 2 de março.