Guia para o novo Regulamento da FIFA sobre Agentes de Futebol - Parte II: O exercício da atividade de agente
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 03 Fev 2023
Na sequência do exponencial aumento de intermediários de futebol, entre os quais se passaram a incluir, muitas vezes, os próprios familiares dos jogadores ou pessoas próximas sem a formação adequada para o efeito, o Comité de Stakeholders da FIFA decidiu, em 2019, voltar a regulamentar em pormenor a atividade destes agentes desportivos.
Nesse seguimento, foi aprovado, no passado dia 16 de dezembro de 2022, o novo Regulamento de Agentes de Futebol da FIFA (“FFAR”), que substitui o Regulamento de Intermediários em vigor desde 2015.
No FFAR, a FIFA introduz mudanças significativas a propósito do acesso e exercício da atividade de agente de futebol, com o objetivo de promover a integridade e a transparência no setor. Embora estas alterações apenas se apliquem no contexto de transações internacionais, as mesmas terão significativo impacto para a generalidade dos agentes de futebol.
Na primeira parte deste artigo, abordámos as diversas alterações impostas pelo FFAR em matéria de acesso à atividade de agente de futebol. Proceder-se-á agora à análise das alterações mais relevantes no que respeita ao exercício da atividade.
- Contratos de Representação
Tal como já resultava do Regulamento de Intermediários de 2015, o agente de futebol apenas pode prestar serviços de representação e intermediação após a celebração de um contrato de representação reduzido a escrito.
A novidade introduzida pelo FFAR respeita à duração desses contratos, que passa agora a estar limitada a dois anos no caso de contratos celebrados com jogadores ou treinadores, sendo nula a inclusão de cláusulas de renovação automática. Findo o período máximo de dois anos, caso o agente de futebol e o jogador/treinador pretendam prolongar a relação contratual, terão de negociar a renovação do contrato de representação.
Esta é já a solução consagrada na lei portuguesa, contida no artigo 38.º, n.º 4 e 5, da Lei n.º 54/2017, de 14 de julho.
Estas regras não se aplicam aos contratos de representação celebrados entre agentes de futebol e clubes, que podem ser celebrados por tempo indeterminado.
- Proibição de dupla representação
O FFAR introduz a proibição expressa de os agentes de futebol representarem mais do que uma parte numa transação, visando prevenir a ocorrência de conflitos de interesses.
Existe, contudo, uma exceção a esta regra: o agente de futebol poderá representar simultaneamente o jogador/treinador e o seu clube de destino, desde que ambas as partes o consintam expressamente e por escrito.
- Representação de menores
Atendendo à crescente competição no mercado entre clubes e agentes para assinar com os melhores talentos jovens, uma das preocupações da FIFA, refletida no FFAR, foi precisamente a de reforçar a proteção dos praticantes menores.
Nesse sentido, nos termos do FFAR, consagra-se que o agente de futebol apenas poderá abordar ou representar um menor a partir dos seis meses anteriores à data em que este atinja a idade permitida para celebrar o seu primeiro contrato profissional nos termos da lei aplicável no país onde será contratado, devendo obter consentimento prévio, por escrito, do respetivo representante legal.
Naturalmente, o agente poderá intervir livremente na celebração de contratos de trabalho ou de formação desportiva, desde que em representação da entidade empregadora ou formadora.
Acresce, sem prejuízo, que o agente de futebol apenas poderá representar um menor, ou um clube numa transação que envolva um menor, depois de completar um curso de desenvolvimento contínuo sobre menores, que será disponibilizado na Plataforma de Agentes da FIFA. A acreditação obtida permitirá ao agente de futebol participar em transações que envolvam menores durante três anos, ao fim dos quais terá de completar um novo curso.
Caso o agente de futebol aborde um menor fora das condições previstas no FFAR, será punido, no mínimo, com a sanção de multa e suspensão da licença até dois anos.
Nesta matéria, o FFAR introduz ainda uma alteração relevante, passando a ser permitido ao agente de futebol receber comissões pelos serviços prestados em transações que envolvam menores, desde que respeitem à celebração de contrato profissional pelo menor.
- Comissões
As mudanças mais controversas introduzidas pelo FFAR dizem respeito às comissões pagas aos agentes de futebol.
Desde logo, o FFAR introduz um modelo client-pays, o que significa que o pagamento das comissões é feito exclusivamente pelo cliente. Este modelo contraria aquela que era a prática habitual neste meio, em que os clubes assumiam, amiúde, o pagamento das comissões devidas aos agentes dos jogadores. No novo regime, tal só é possível se o jogador ou treinador auferirem uma remuneração anual inferior a USD 200.000,00.
Por outro lado, também contrariamente ao regime que vinha vigorando até então, o momento do pagamento das comissões não mais poderá ser acordado entre as partes. Ao invés, o FFAR impõe agora que o pagamento das comissões tenha lugar após o fecho do respetivo período de inscrição e em prestações trimestrais durante a execução do contrato de trabalho negociado. Caso o agente de futebol tenha representado o clube vendedor, o pagamento das comissões deve ter lugar após a receção do preço de transferência.
A alteração mais criticada pelos agentes de futebol respeita, sem prejuízo, à introdução de limites às comissões cobradas (service fee caps), que variam consoante o agente represente o jogador, o clube de origem ou o clube de destino.
A tabela de comissões prevista no artigo 15.º do FFAR é a seguinte:
Exemplo: se um jogador auferir anualmente USD 250.000,00, o seu agente terá direito, no máximo, a comissões correspondentes a USD 11.500,00 (5% de USD 200.000,00 + 3% de USD 50.000,00).
Muitos stakeholders do setor vêm entendendo que esta alteração restringe a livre concorrência, prejudicando o funcionamento normal do mercado. A FIFA, por sua vez, justifica a introdução destes limites com o propósito de promover a integridade do mercado futebolístico. Apenas a prática permitirá avaliar o impacto que esta alteração terá na indústria, e, em particular, nos agentes de futebol com uma atividade menos expressiva de transferências internacionais.
O FFAR prevê ainda que todos os pagamentos de comissões a agentes de futebol, no âmbito de transferências internacionais, passem a ser feitas através da nova FIFA Clearing House.
- Direitos e obrigações dos agentes de futebol
Em matéria de direitos e obrigações dos agentes de futebol, destacam-se duas novidades introduzidas pelo FFAR:
(i) É permitido ao agente de futebol abordar e/ou celebrar contrato de representação com um Cliente que seja representado a título exclusivo por outro agente, nos últimos dois meses desse contrato;
(ii) É proibido ao agente fazer pagamentos ou oferecer outras vantagens não pecuniárias a Clientes (ou seus familiares e amigos) como incentivo à celebração de contrato de representação.
- Divulgação e publicação de informação
O FFAR prevê ainda que a FIFA deve divulgar a seguinte informação: (i) nomes de todos os agentes licenciados; (ii) os clientes representados por cada agente, a natureza da respetiva relação (exclusiva/não exclusiva) e a data de caducidade do respetivo contrato de representação; (iii) os serviços prestados pelo agente; (iv) as sanções aplicadas a agentes e a clientes; e (v) detalhes quanto a todas as transações em que intervenha um agente de futebol, incluindo o valor das comissões pagas.
Esta alteração tem, também, sido alvo de intensas críticas por parte dos stakeholders implicados, que veem na mesma um incentivo a práticas desadequadas de angariação e desvio de clientes (client poaching), particularmente tendo em conta que o FFAR permite, como referido, a abordagem a potenciais clientes que se encontrem já representados a título exclusivo por outro agente, ainda que apenas nos últimos dois meses desse contrato.
- Resolução de litígios
Todos os litígios decorrentes de, ou em conexão com, contratos de representação de dimensão internacional celebrados a partir de 1 de outubro de 2023, passam a ser da exclusiva jurisdição da FIFA, através da respetiva Câmara de Agentes (“CA”).
A litigância na CA é gratuita e os litígios deverão ser submetidos à mesma no prazo de dois anos após o facto que lhes deu origem.
- Poder sancionatório
Ao abrigo do Regulamento de Intermediários de 2015, cabia às federações nacionais aplicar às partes sob a sua jurisdição as sanções relativas ao incumprimento das normas do Regulamento ou dos seus regulamentos nacionais.
O FFAR vem também alterar essa realidade, cabendo agora à FIFA (através do Comité Disciplinar e/ou do Comité de Ética) aplicar as sanções relativas ao incumprimento do FFAR ou de outros regulamentos da FIFA.
As federações nacionais continuam, naturalmente, a exercer o poder sancionatório relativamente ao incumprimento dos regulamentos nacionais.
As disposições relativas ao exercício da atividade de agente de futebol entram em vigor a 1 de outubro de 2023 e aplicam-se a todos os contratos de representação celebrados após 16 de dezembro de 2022. Os contratos de representação celebrados antes dessa data mantêm-se válidos até caducarem, não podendo ser renovados.
As federações nacionais têm, por sua vez, até 30 de setembro de 2023 para implementar regulamentos nacionais sobre o exercício da atividade dos agentes de futebol, devendo incorporar mandatoriamente os artigos 11.º a 21.º do FFAR.
Miguel Santos Almeida | msa@servulo.com
Maria Novo Baptista | mnb@servulo.com