Atenção, o seu browser está desactualizado.
Para ter uma boa experiência de navegação recomendamos que utilize uma versão actualizada do Chrome, Firefox, Safari, Opera ou Internet Explorer.

Diretiva n.º 2019/1937 – Um Passo em Direção à Delação Premiada Europeia?

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 11 Dez 2019

É inegável a moderna importância dos delatores na revelação de alguns dos maiores escândalos da atualidade. Num momento em que também em Portugal se volta a discutir a delação premiada, a experiência de outros Estados membros e de países terceiros, e casos como os “LuxLeaks”, os “Panama Papers” e o “Cambridge Analytica”, demonstram a importância da denúncia de práticas ilícitas e da existência de mecanismos institucionalizados e que protejam o denunciante de eventuais consequências da delação. O modelo europeu, goste-se ou não, e as nossas sociedades assentam crescentemente nas denúncias e na divulgação pública, as quais «alimentam os sistemas de aplicação dos direitos nacionais e da União com informações conducentes à deteção, à investigação e à ação penal eficazes por violações do direito da União, aumentando deste modo a transparência e a responsabilização».

Vêm estas palavras a propósito da próxima entrada em vigor na ordem jurídica da União Europeia, no próximo dia 16 de dezembro da Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União Europeia (UE), sobre cujos trabalhos preparatórios, aliás, a SÉRVULO já se pronunciou em momento anterior.

A Diretiva visa assegurar um enquadramento mínimo de proteção dos denunciantes. E tem um objetivo geral, cobrindo quase todas as áreas de atribuição da União, incluindo o mercado interno, contratação pública, saúde pública, ambiente, defesa do consumidor, segurança dos transportes, segurança dos produtos ou a privacidade e proteção de dados. Mas pretende até aplicar-se, ainda que subsidiariamente, nos domínios já objeto de regras da UE, tais como os dos programas de clemência no Direito da Concorrência (v.g. Regulamento (CE) n.º 773/2004, artigo 4.º-A; e Diretiva (UE) 2019/1) ou dos mecanismos em vigor no domínio dos serviços financeiros, da administração pública europeia, da prevenção do branqueamento de capitais ou do financiamento do terrorismo.

A Diretiva prevê três diferentes meios através dos quais a denúncia pode ser efetuada: denúncia interna, denúncia externa e a divulgação pública.

Nestes, a denúncia interna assume-se como forma preferencial nas empresas privadas. A Diretiva impõe às empresas a assunção de responsabilidades estritas nestes domínios de compliance. As empresas devem estabelecer os canais e procedimentos através dos quais as denúncias possam ser recebidas e investigadas. Desta obrigação ficam excluídas, em princípio, as empresas que tenham menos de 50 trabalhadores, quando outro instrumento legislativo europeu não preveja a existência desses canais e procedimentos (podendo os Estados diferir para 2023 a aplicação a empresas que tenham até 249 trabalhadores). Já no setor público, esta obrigação abrange todas as entidades, independentemente do número de trabalhadores, embora a Diretiva preveja a possibilidade de os Estados membros excluírem os municípios com menos de 10.000 habitantes e as entidades públicas com menos de 50 trabalhadores.

Os mecanismos a implementar incluem, designadamente, (i) canais para a receção de denúncias (escritas, orais ou de ambos os tipos) e avisos de receção destas, (ii) um serviço imparcial competente para dar as seguir; (iii) estabelecimento de prazos razoáveis, até 3 meses, para dar conhecimento ao denunciante das medidas adotadas ou que se pretendem adotar em consequência da denúncia. As empresas devem garantir que a identidade do denunciante apenas é divulgada ao pessoal autorizado e devem ainda conservar um registo de todas as denúncias efetuadas ao abrigo da Diretiva.

Para os denunciantes, a Diretiva significa acesso a um largo acervo de direitos, com especial destaque para o direito de não sofrer retaliações pela denúncia. Dentro deste direito cumpre assinalar que, quando seja realizada uma denúncia ao abrigo da Diretiva, o denunciante não pode ser responsabilizado pela violação de qualquer cláusula contratual de confidencialidade ou, no que respeita ao acesso às informações objeto da denúncia, por qualquer infração que não constitua crime. A Diretiva ainda prevê que, quando exista um litígio relativo a prejuízos sofridos pelo denunciante, a pessoa que adotou a medida prejudicial deve demonstrar que a adotou por um motivo justificado, invertendo-se o ónus probatório. O denunciante ainda pode beneficiar de diversas medidas de apoio, proteção contra a retaliação, ou da irrenunciabilidade dos direitos e vias de recurso, mesmo por acordos de arbitragem pré-litigiosos.

Em relação aos direitos das pessoas visadas pela denúncia, a Diretiva prevê que os Estados membros asseguram, como não poderia deixar de ser, o direito a um processo equitativo, a presunção de inocência e os seus direitos de defesa. As pessoas visadas beneficiam, também, da mesma proteção que os denunciantes no que diz respeito à confidencialidade da sua identidade.

Nesta nova cultura que em definitivo se instala, da responsabilidade, mas também da denúncia e da vigilância mútua, os desafios são tremendos. Ainda que os Estados membros disponham de dois anos para transpor a Diretiva (17 de dezembro de 2021), as mudanças estruturais que a Diretiva impõe não são alcançáveis num curto espaço de tempo. Empresas e entidades públicas devem começar a desenvolver esforços para se adaptarem àquela que será nova realidade e incentivar práticas internas de compliance. Também se espera que o Estado Português promova um debate alargado com vários stakeholders para uma adequada transposição desta Diretiva.

Miguel Gorjão-Henriques

mgh@servulo.com

Francisco Marques de Azevedo

fma@servulo.com