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Desempenhar funções em IPSS comporta riscos acrescidos de responsabilização criminal?

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 13 Ago 2020

O recente acórdão de fixação de jurisprudência  do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2020 estabelece uma opção clara.

Entende este tribunal que as instituições particulares de solidariedade social [“IPSS”] não devem ser consideradas «organismos de utilidade pública» e, por essa via, não deve ser considerado funcionário, para efeito da lei penal, quem desempenhe ou participe no desempenho da sua atividade”.

1. O que se discutiu neste acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça?

Em causa está a delimitação do conceito de «organismo de utilidade pública», como previsto na alínea d), do n.º 1, do artigo 386.º do CPP, e da inclusão nele, ou não, das IPSS, sob qualquer das suas formas. 

Em síntese, caso as IPSS integrem o conceito de «organismo de utilidade pública», então a expressão “funcionário” para efeito da lei penal abrange todos aqueles que desempenhem funções em IPSS ou nelas participem. Quer isto significar que, em abstrato, o comportamento de quem desempenha tais funções pode subsumir-se pelo menos nos tipos legais de alguns dos crimes praticados no exercício de funções públicas (Capítulo IV do Código Penal), sem prejuízo de, em concreto, ser necessário verificar se se pode fazer uma equiparação à conduta tipicamente descrita no tipo legal de crime.

A discussão, quer na doutrina, quer na jurisprudência, não tem sido de modo algum pacífica, aliás, do acórdão em análise constam quatro Declarações de Voto, defendendo posições antagónicas à jurisprudência fixada.

Por um lado, defende-se o sentido amplo do conceito de «organismo de utilidade pública», por outro um conceito restritivo que exclui as pessoas coletivas de utilidade pública, uma vez que estão em causa pessoas coletivas de direito privado.

2. Qual a posição adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça nesta contenda? 

Com a decisão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”) fixou-se a seguinte jurisprudência: 

O conceito de ‘organismo de utilidade pública’, constante da parte final da atual redação da alínea d), do n.º 1, do artigo 386.º, do Código Penal, não abarca as instituições particulares de solidariedade social, cujo estatuto consta hoje do Decreto-Lei n.º 172 -A/2014, de 14 de novembro, alterado pela Lei n.º 76/2015, de 28 de julho.” 

Em favor da sua posição, o STJ utilizou os seguintes argumentos:

i) não se compreenderia, nem se vê razão para que o legislador de 1979/82 tivesse pretendido alargar o conceito de funcionário de forma a abranger pessoas que não tinham uma tal qualidade em face do anteprojeto de Código Penal, quando os novos diplomas legais acentuavam o seu carácter privado; 

ii) não se compreenderia a utilização de um conceito de contornos indefinidos para indicar aquilo que podia ser designado em termos precisos;

iii) se analisados os tipos incriminadores incluídos no Código Penal em que o agente é caracterizado como sendo funcionário, veremos que, em regra, estão incluídos no Título V do Código Penal “dos crimes contra o Estado”, associados ao exercício de funções específicas (como as relacionadas com a realização da justiça ou o cumprimento de reações criminais privativas da liberdade), ou ao exercício do poder público e aos deveres a ele inerentes não podendo ser praticados por alguém que desenvolva funções em IPSS;

iv) ou, por outro lado, encontram-se fora desse Livro, mas pressupõem um grave abuso de autoridade, características também estranhas ao exercício de funções em instituições particulares de solidariedade social;

v) se as funções em IPSS podiam propiciar a prática de crimes de corrupção e de peculato, para os quais a qualidade de funcionário também é relevante, há que notar que esses mesmos comportamentos são em geral igualmente puníveis quando assumidos por não funcionários;

vi) por fim, ficaria por explicar a razão de ser de uma punição agravada para os trabalhadores e os titulares de órgãos de pessoas coletivas de direito privado que, nem orgânica, nem funcionalmente, fazem parte da Administração Pública

O STJ entendeu não existirem motivo para equiparar, para efeitos penais, aqueles que desempenham funções em IPSS aos “trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado”.

3. Qual a relevância prática desse entendimento? 

Como se antevê, tendo o STJ optado por fixar jurisprudência no sentido de que as IPSS não devem ser consideradas «organismos de utilidade pública», então não deve ser considerado funcionário, para efeito da lei penal, quem desempenhe ou participe no desempenho da sua atividade.

Desse modo, pretende-se assinalar a posição à luz da qual as IPSS se inserem no setor cooperativo e social, ainda que sob fiscalização do Estado, mas sem que se equipare quem aí desempenhe funções aos “funcionários”, não se lhes aplicando as específicas exigências e deveres legais dos funcionários que integram a previsão do artigo 386.º do Código Penal.

Uma das consequências práticas mais relevantes desse entendimento é que quem desempenhe funções em IPSS não será punido, em abstrato, tão gravemente como se de um funcionário se tratasse.

4. Qual o sentido das Declarações de Voto? 

Sumariamente, as Declarações de Voto ou tomam a posição totalmente oposta à adotada (“a expressão “organismo público” referida na alín. d) do n.º 1 do art.º 386.º do Código Penal abrange as instituições particulares de solidariedade social”), ou, por sua vez, apresentam um entendimento intermédio (“o simples facto de alguém exercer uma qualquer função numa IPSS não determina, por si só, a integração no conceito de funcionário, (…) há que, em função do caso concreto, verificar se se pode fazer uma equiparação à conduta tipicamente descrita no tipo legal de crime e causa.”).

5. Em que medida uma decisão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça influencia as decisões dos tribunais judiciais? 

Em primeiro lugar, uma decisão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem eficácia no próprio processo em que o recurso foi interposto, bem como nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos da lei. 

Dito isto, apesar de não constituir jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, uma decisão de fixação de jurisprudência obriga, nos termos do artigo 445.º, n.º 3, do CPP, porém, a um acrescido dever de fundamentação dos tribunais judiciais que divirjam da jurisprudência fixada, impondo um exercício minucioso de justificação das divergências relativamente à jurisprudência fixada. 

Cláudia Amorim | ca@servulo.com

Rui Oliveira Alves | roa@servulo.com

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