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Descontos Abusivos e Concorrentes Igualmente Eficientes: mais um episódio do caso Intel

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 15 Set 2017

Em 2000 e 2003, a Intel foi denunciada junto da Comissão Europeia por alegado abuso de posição dominante. Em 2009 a Comissão Europeia aplicar-lhe-ia uma coima de 1,06 mil milhões de euros[1]. A Intel recorreu e, em 2014, o Tribunal Geral negara provimento ao recurso[2]. Era por isso muito aguardado o acórdão do Tribunal de Justiça que, no passado dia 7, iria provavelmente decidir o processo.

Recorde-se a conduta da Intel: uma empresa com posição dominante, com mais de 70% do mercado, que adotou um política de descontos de exclusividade (entre outras restrições) na venda de processadores x86 CPU a fabricantes de computadores, com o objetivo de excluir do mercado a sua concorrente AMD (Advanced Micro Devices Inc.).

Apesar do caráter interlocutório do acórdão a final produzido e da potencial violação do princípio da demora razoável do processo, o acórdão tem manifesto interesse para os cultores do direito da concorrência. Em particular, pela transversalidade das questões que aprecia, que interessam a qualquer empresa de qualquer mercado, seja titular ou não de uma posição dominante.

O acórdão clarifica o âmbito de aplicação do direito da concorrência da UE e aborda temas importantes relativos ao respeito dos direitos de defesa. Mas adiciona complexidade à tarefa das instâncias judicativas intermédias e, entenda-se, parece colocar as autoridades de concorrência perante escolhas difíceis e, porventura até, noutro plano, tornar mais complexa a afirmação da existência de práticas abusivas por empresas em posição dominante.

É importante assinalar a ênfase posta na doutrina dos efeitos qualificados: comportamentos anticoncorrenciais adotados fora da UE mas que possam produzir efeitos imediatos e substanciais na União fundam a competência da Comissão Europeia (e das autoridades nacionais) para lidar com tais práticas restritivas da concorrência.

Quanto ao fundo, recorde-se que o Tribunal Geral negara provimento ao recurso da Intel, mas fê-lo sem considerar os argumentos brandidos pela Intel quantoà aplicação do teste AEC pela Comissão Europeia. Em suma, apesar do extenso esforço argumentativo, o Tribunal Geral procurara simplificar a sua tarefa e optara pela aplicação da jurisprudência Hoffmann-La Roche[3], afirmando que os descontos de exclusividade são por natureza aptos a restringir a concorrência e que, por isso, entre a análise de todas as circunstâncias concretas destinada a estabelecer a sua capacidade para restringir a concorrência e produzir a exclusão dos concorrentes igualmente eficientes, não seria necessário considerar o modo como a Comissão Europeia tinha aplicado o teste do concorrente igualmente eficiente (teste AEC, as efficient competitor), no fundo a questão de saber se um tal concorrente poderia oferecer viavelmente tais descontos, sem isso conduzir à sua exclusão do mercado.

Ora, o Tribunal de Justiça considerou que a desconsideração dos argumentos da Intel sobre o modo como a Comissão Europeia aplicar o teste AEC se configuravam como um erro de direitoque afetava a decisão final do processo.

Em particular, o Tribunal de Justiça entendeu que a Comissão Europeia, apesar de o considerar desnecessário, tinha acabado por dar «uma importância real» ao teste AEC para afirmar a prática abusiva da Intel e que, por isso, o Tribunal Geraltinha a obrigação de apreciar os argumentos da recorrente quanto à fundamentação da Comissão Europeia a este respeito. E que a Comissão Europeia tinha procedido bem pois, de acordo com a jurisprudência Post Danmark[4], «a Comissão tem a obrigação não só de analisar, por um lado, a importância da posição dominante da empresa no mercado relevante e, por outro, a taxa de cobertura do mercado pela prática controvertida, bem como as condições e as modalidades de concessão dos descontos em causa, a sua duração e o seu montante, mas também de apreciar a eventual existência de uma estratégia destinada a preterir os concorrentes pelo menos igualmente eficazes». Recorde-se que, quanto ao teste AEC e após análise exaustiva, a Comissão Europeia concluíra pela inviabilidade de disputa do mercado por parte de concorrente igualmente eficiente.

Assim, o acórdão sustenta-se no entendimento de que a jurisprudência Hoffmann-La Roche deve ser lida no sentido de, na eventualidade de a empresa visada ter tentado sustentar (com base em elementos de prova) que a sua conduta não foi capaz de restringir a concorrência, a Comissão dever atender a esses elementos. Consequentemente, em sede recursiva, não pode o Tribunal Geral deixar de apreciar todos os fundamentos avançados pelo recorrente para colocar em crise os méritos das declarações da Comissão, relativas ao potencial restritivo da conduta. Mesmo tratando-se da aplicação de um desconto de exclusividade. 

Menos exigente acabou por se revelar o Tribunal de Justiça na análise dos argumentos avançados pela Intel relativamente ao âmbito de aplicação do direito da concorrência na União, por um lado e, por outro, na análise dos fundamentos relacionados com os seus direitos de defesa, nomeadamente no que diz respeito a vício processual alegadamente essencial. Em ambos os casos, e ainda que salvaguardando a improcedência dos vícios, não deixou o Tribunal de Justiça de, sustentando-se em anterior jurisprudência, alertar para a circunstância de os fundamentos supérfluos do acórdão recorrido não poderem levar à sua anulação.

Ainda que a decisão aparente ter um caráter eminentemente formal[5], uma vez que se sustenta na insuficiência do iter argumentativo do Tribunal Geral, a verdade é que se reveste de grande importância, pois pode pôr em crise a jurisprudência tradicional Hoffmann-La Roche e abrir a porta a uma nova (e potencialmente relevante) via de defesa das empresas indiciadas por abuso de posição dominante. É assunto a aprofundar e seguir proximamente.



[1] Acórdão do Tribunal de Justiça de 6.9.2017, Intel Corporation Inc. c. Comissão, proc. C-413/14, EU:C:2017:632.

[2] Acórdão do Tribunal Geral de 12.6.2014, Intel Corporation Inc. c. Comissão, proc. T-286/09, EU:T:2014:547.

[3] Acórdão do Tribunal de Justiça de 13.2.1976, Hoffmann-La Roche c. Comissão, proc. 85/76, EU:C:1979:36.

[4] Acórdão do Tribunal de Justiça de 27.3.2012, Post Danmark, proc. C-209/10, EU:C:2012:172, n.° 29.

[5] Assim, Miguel Moura e Silva, The Intel judgment: the ECJ through the looking glasses, publicado em www.facebook.com/miguel.mouraesilva.    

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