COVID 19 – A barreira invisível entre senhorios e arrendatários
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 10 Ago 2020
O ano 2020 pontapeou, como nenhum outro, a pretensa normalidade das nossas vidas, sobretudo pela escala esmagadoramente global de uma crise sem precedentes, primeiro sanitária, a que se seguiu, inevitavelmente, a económica. Em apenas quatro meses, assistimos à publicação massiva de diplomas legais, que, a coberto de uma excecionalidade ímpar, procuraram equilibrar uma balança impossível. O sector imobiliário não foi exceção. A perda total de rendimentos de famílias e empresas causada pelas medidas de caráter sanitário, que se impunham para salvar vidas e aliviar um frágil SNS, levou à tomada de medidas paliativas, necessárias, à prevenção de uma catástrofe ainda maior.
Em 19 de Março de 2020, assistimos à publicação da Lei nº 1-A/2020, que proibiu os despejos, suspendendo, durante o período da pandemia, e em pleno dever de confinamento domiciliário “a produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio” e as “ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria”.
No dia seguinte, o Decreto nº 2-A/2020, já em estado de emergência, procurou a proteção dos proprietários, tentando equilibrar a balança, e impedindo que o encerramento de instalações e estabelecimentos imposto servisse de fundamento “à resolução, denúncia ou (…) extinção dos contratos de arrendamento não habitacional ou outras formas contratuais de exploração de imóveis”.
A 6 de Abril, a chamada “moratória” das rendas vem tentar impedir o descalabro económico e a crise social resultante do incumprimento massivo dos contratos de arrendamento (e semelhantes), com a publicação da Lei nº 4-C/2020, segundo o qual é conferida a possibilidade de diferimento de rendas durante o estado de emergência e no mês seguinte ao da sua sucessão, e o seu pagamento faseado no período de 12 meses imediatamente subsequente. A lei pretendia proteger os arrendatários habitacionais com perda de rendimentos (> 20%), e taxa de esforço > 35% e os não habitacionais ou semelhantes, cuja atividade se encontrasse suspensa ou encerrada, por força das medidas para impedir o progresso da pandemia.
Quase no fim do estado de emergência, em 29 de Maio de 2020, a Lei nº 17/2020 postergou para dia 1 de Setembro de 2020 o inicio do plano de pagamentos projetado pela Lei 4-C/2020, que deixou desse modo de ser duodecimal, devendo ser cumprido até 30 de Junho de 2021, o que na prática se traduz em pagar o mesmo número de rendas durante menos tempo, adiando o problema e sufocando os arrendatários que, com alguma sorte, começariam a recuperar os seus rendimentos. Muitos já não o conseguiram.
Neste mês de Julho, está em aprovação parlamentar a Proposta de Lei n.º 42/XIV/1.ª, que pretende prorrogar, mais uma vez, para quem o requeira e demonstre, o prazo de diferimento das rendas por período não posterior a 31/12/2020, permitindo o estabelecimento de novos planos de pagamento, a realizar no prazo máximo de 24 meses, ou seja, até 31 de Dezembro de 2022.
Quatro meses separam estes diplomas. Quatro meses de barreira invisível entre senhorios e arrendatários nesta crise pandémica, com ajustes, prorrogações, altercações, indignações, desigualdades e (algumas) injustiças, mas com três aspetos invariáveis comuns: (i) a imprevisibilidade do seu desfecho, (ii) a maior devastação causada pela crise económica face à crise sanitária, e a (iii) inevitável crise de valores que se lhes seguirá a ambas.
Carla Parreira Leandro | cl@servulo.com