COVID-19 e os PDM’s de terceira geração: E agora?
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 01 Abr 2020
Com a aprovação da Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei dos Solos), através da Lei n.º 31/2014, de 30 de maio e, na sua sequência, com a revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, está em curso uma profunda reforma do modelo de classificação e gestão do uso do solo.
De facto, a Lei dos Solos procedeu a uma reforma estruturante, quer no sentido de definir um conjunto de normas relativas à disciplina do uso do solo, quer no sentido ou objetivo de traduzir uma visão conjunta do sistema de planeamento e dos instrumentos de política de solos, entendidos como plataformas de excelência da execução dos planos territoriais.
O novo quadro legislativo tem implícita a eliminação da denominada categoria de “solo urbanizável” enquanto espaço territorial expectante e sem programação assinalável a curto, médio e longo prazo.
O “solo urbano”, passou a corresponder ao que se encontra total ou parcialmente urbanizado ou edificado e, como tal, afeto no plano à urbanização ou edificação. O “solo rústico”, por seu turno, passa a corresponder àquele que, pela sua reconhecida aptidão, se destina, nomeadamente, ao aproveitamento agrícola, pecuário, florestal, à conservação e valorização de recursos naturais, à exploração de recursos geológicos ou de recursos energéticos, assim como o que se destina a espaços naturais, culturais, de turismo e recreio, e àquele que não seja classificado como urbano.
Publicada em 2014, a Lei dos Solos previu um prazo de cinco anos para que os instrumentos de gestão territorial adaptassem os planos diretores municipais às novas regras, prazo esse que termina no próximo dia 13 de julho de 2020.
Com a Lei dos Solos terá começado um novo ciclo que deveria culminar, naquela data, com a consolidação de um renovado instrumento de gestão territorial: o denominado “PDM de 3.ª geração”.
De acordo com o n.º 2 do artigo 82.º da referida lei, as novas regras relativas à classificação de solos são aplicáveis aos procedimentos de elaboração, alteração ou revisão de planos territoriais de âmbito intermunicipal ou municipal, iniciados após a data da sua entrada em vigor e aos que ainda se encontrem pendentes um ano após essa data, apenas com a exceção prevista no n.º 3 do mesmo artigo que determina que os terrenos que estejam classificados como solo urbanizável ou solo urbano com urbanização programada, mantêm a classificação como solo urbano para os efeitos da lei, até ao termo do prazo para execução das obras de urbanização que tenha sido ou seja definido em plano de pormenor, por contrato de urbanização ou de desenvolvimento urbano ou por ato administrativo de controlo prévio.
Por seu turno, o n.º 2 do artigo 199.º do RJIGT veio determinar que os planos municipais ou intermunicipais devem, no prazo máximo de cinco anos após a entrada em vigor do diploma, incluir as novas regras de classificação e qualificação sob pena de suspensão das normas do plano territorial que deveriam ter sido alteradas, não podendo, na área abrangida e enquanto durar a suspensão, haver lugar à prática de quaisquer atos ou operações que impliquem a ocupação, uso e transformação do solo.
No entanto, há um número considerável de autarquias a esta data atrasadas no processo de revisão dos planos.
A COVID-19 veio agravar a preocupação com o cumprimento do prazo pelas Autarquias por razões óbvias que se pretendem com o impacto da pandemia no funcionamento dos múltiplos serviços, municipais e estaduais com intervenção no procedimento de elaboração, alteração ou revisão dos planos municipais.
Agrava-se, assim, o risco de os Municípios perderem solo urbanizável por efeito da acima referida disposição legal, mas em risco ficam essencialmente particulares e investidores que podem perder direitos urbanísticos que de outro modo lhes poderiam ser assegurados por via da reclassificação dos solos a efetuar através dos novos planos.
Apesar de a Associação Nacional de Municípios Portugueses ter manifestado já a sua preocupação e de ter solicitado ao Governo o adiamento do prazo, o certo é que, para já, entre as medidas adotadas pelo Governo para fazer face à emergência da COVID-19 não se encontra qualquer medida que, direta ou indiretamente, permita às Autarquias beneficiar de uma prorrogação do prazo determinado na lei, continuando, assim, o mesmo a correr ininterruptamente durante a vigência do Estado de Emergência, que se adivinha virá a ser prorrogado pelo Presidente da República.
É sabido, que os chamados “PDMs de 3.ª geração” são o fruto da preocupação do Estado em acautelar os problemas que a dispersão urbana tem revelado, os impactos económicos de uma infindável rede de infraestruturas, obsoleta, cara, que tem de ser permanentemente renovada ou ainda pela desestruturada rede de equipamentos de dimensão e utilização pública que vai “polvilhando” o território nacional aparentemente com débeis relações funcionais ou programáticas com a população.
Provavelmente são estes novos planos a derradeira oportunidade para que nos possamos posicionar na linha da frente da preservação do ambiente, da qualidade dos espaços urbanos, da efetiva eficiência energética e da sustentabilidade económica dos territórios.
Simultaneamente, é sabido que, historicamente, as doenças moldam as cidades. Alguns dos desenvolvimentos mais emblemáticos do planeamento e gestão urbanística a nível mundial, como o Metropolitan Board of Works de Londres e os sistemas de saneamento de meados do Século XIX, foram desenvolvidos em resposta a crises de saúde pública, como surtos de cólera. Agora, o COVID-19 junta-se a uma longa lista de doenças infecciosas, como a gripe espanhola de 1918 em Nova York e na Cidade do México ou a doença pelo vírus Ébola na África Ocidental em 2014, e provavelmente deixará marcas duradouras nos espaços urbanos pelo mundo fora.
A COVID-19 trará, assim, em si mesma, novas preocupações de planeamento das cidades e de uma maior definição dos direitos de ocupação e edificação dos espaços urbanos de forma a promover no futuro próximo a retoma do investimento nesta área.
Por tudo isto, pelas dúvidas e incertezas que o não cumprimento do prazo poderá trazer à gestão do território, pela perda de direitos que inexoravelmente ocorrerá em muitos casos na esfera jurídica de particulares e pela perda de oportunidades de investimento que poderão revelar-se importantes na retoma pós-pandemia, talvez fosse prudente adiar a meta definida há cinco anos e aguardar pela reposição da normalidade para concluir os procedimentos que darão com toda a certeza início ao novo ciclo urbanístico.
Resta aguardar as novas medidas de combate à pandemia que surgirão nos próximos dias.
Filipa Névoa | fne@servulo.com