Auxílios Públicos em Tempo de Pandemia – o Novo Quadro Temporário da Comissão Europeia
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 25 Mar 2020
Uma das principais características dos tempos do COVID-19 é a constante adaptação que exige às sociedades, às empresas, às pessoas e às instituições de governo, nacional ou supranacional, tentando balancear as exigências de saúde pública (uma atribuição estatal) com a necessária continuidade do funcionamento da economia e das sociedades.
Ao longo deste período, como a Sérvulo teve já oportunidade de dar conta, a Comissão Europeia virá crescentemente a ser chamada para cooperar com os Estados membros para que se possam encarar os problemas e derrotar o COVID-19, mormente nas implicações sísmicas que o mesmo tem para as economias e as famílias. Daí que se afigure essencial que a Comissão Europeia mantenha uma postura flexível perante a necessidade de os Estados membros adotarem medidas internas para mitigar os efeitos económicos (e sociais) da pandemia. Importa, no entanto, dispor de quadros de referência que sejam confiáveis e transparentes, mas também flexíveis, necessariamente flexíveis.
Neste quadro, a Comissão Europeia adotou a 19 de março um Quadro Temporário relativo a medidas de auxílios públicos para suportar a economia durante o surto de COVID-19, pelo qual fornece aos Estados membros que notificam auxílios públicos destinados a sanar uma perturbação grave na sua economia, as linhas-mestras de política de auxílios públicos que tenciona adotar neste período.
A primeira nota é o alargamento generalizado desta faculdade a todos os Estados membros, e não apenas aos em situação similar ao da Itália, como antes tinha sido declarado. Dada a incerteza sistémica e transversal, com a disrupção das cadeias de abastecimento e as quebras brutais na procura e na oferta, e os efeitos negativos sobre o investimento e, mesmo mais, sobre a liquidez das empresas, mesmo das até agora solventes e fulgurantes, a Comissão Europeia procura estabelecer um quadro de referência num cenário formal desenhado para tratados assentes em economias em crescimento, abertas e competitivas, baseadas na total liberdade de circulação de fatores de produção, no mercado interno e no recuo do Estado para a função de garante sistémico deste sistema autónomo.
O esforço é difícil e ingrato, mas a Comissão Europeia escolheu parametrizar, com flexibilidade relativa, os instrumentos que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, os Estados são chamados a adotar para assegurar a liquidez suficiente dos mercados, contrabalançar os danos causados em empresas, até aqui mais ou menos solventes, e preservar a continuidade das economias. Impõe-se, por isso, que os auxílios concedidos ao abrigo do Quadro Temporário possam beneficiar empresas solventes que, até aqui, não sofriam de qualquer dificuldade de tesouraria ou de liquidez, nem a podem provar por referência ao tempo pré-COVID-19.
Ao abrigo do Quadro Temporário, a Comissão Europeia fornece diretrizes sobre medidas que desde logo apoiará, se adotadas pelos Estados membros: (i) subvenções diretas, benefícios fiscais seletivos e adiantamentos; (ii) garantias a empréstimos contraídos por empresas junto de instituições de crédito; ou (iii) empréstimos a taxas de juro reduzidas. Saliente-se que os Estados membros podem cumular estes auxílios entre si pairando, contudo, a dúvida sobre a possibilidade de cumular os auxílios referidos em (ii) e (iii) quando sejam concedidos através de instituições de crédito.
Relativamente a (i), a Comissão Europeia prevê que possam ser atribuídos no âmbito de um regime de auxílios com um orçamento estimado. São fixados limiares (800.000 euros brutos por empresa) e uma data-limite (até 31 de dezembro de 2020). Deve dizer-se que este teto é absurdo, mormente para Mid-Caps e grandes empresas. Do mesmo modo, e dado o objetivo, a Comissão Europeia exclui das medidas as empresas que já estavam em dificuldade no final de 2019. E alguns setores têm regras particulares (agricultura, pesca e aquicultura, transformação e comercialização de produtos agrícolas).
Quanto a (ii) e (iii), a Comissão Europeia prevê valores mínimos de prémios de garantia ou taxas de juros que podem ser alterados pelos Estados membros consoante a maturidade e o prazo de vencimento do empréstimo, que nunca poderá exceder seis anos, e ainda a cobertura da garantia. De todo o modo, são estabelecidos limites máximos para o montante de garantia e para o valor-base do empréstimo, podendo este ser contraído para investimento ou para reforço da tesouraria. Com a mesma exclusão para empresas em dificuldade no final de 2019. E só adotáveis até 31 de dezembro de 2020.
O Quadro Temporário permite ao Estado conceder auxílios diretamente ou através de instituições de crédito ou outras instituições financeiras. Quando opte por esta última via, há uma preocupação com a possibilidade de as próprias instituições de crédito beneficiarem de auxílios, o que não é o propósito (por ora) das medidas. Mas para não submeter esses auxílios às regras no sector bancário (pois o objetivo não é o de preservar ou restaurar a liquidez, solvência ou viabilidade das instituições de crédito), a Comissão Europeia impõe uma obrigação de passing on dos benefícios para os mutuários, os destinatários dos auxílios.
Adicionalmente, a Comissão Europeia levantou a proibição de os Estados membros suportarem riscos negociáveis no âmbito de um seguro de crédito à exportação, quando fique demonstrado que o mercado, face à situação atual, é incapaz de cobrir esses riscos.
São complexos os tempos que vivemos e as instituições, nacionais e supranacionais, estão sob especial pressão, nos respetivos domínios de atribuição. A União, neste momento crítico, deve ser fator de apoio e de viabilização das medidas urgentes que os Estados membros têm de tomar. E adotar aquelas outras que lhe couberem, nos termos dos Tratados.
Em caso algum, contudo, e desde que se salvaguarde a proporcionalidade e necessidade das medidas, podem os Estados membros ser impedidos de garantir e fornecer à economia, às empresas e aos consumidores, de modo transversal, não discriminatório e proporcional, os meios necessários para enfrentar as dificuldades sentidas, muito principalmente, pelas PMEs, pelas Mid-Caps e até pelas grandes empresas, fundamentais para assegurar o funcionamento da economia, o abastecimento, o emprego e o financiamento das Famílias e do consumo público e privado. Há que sobreviver à pandemia, mas joga-se aqui também o que será viver depois dela.
Miguel Gorjão-Henriques | mgh@servulo.com
Francisco Marques de Azevedo | fma@servulo.com