As transações imobiliárias sem títulos urbanísticos - Alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 23 Jan 2024
1. Alteração operada pelo Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro
Uma das alterações mais simbólicas operadas pelo pacote do “Simplex Urbanístico” (Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro) foi, em matéria transacional, a “desconsideração”, no âmbito dos atos de transmissão de prédios urbanos (vide artigo 19º) da concreta situação dos títulos urbanísticos (vulgo Licenças de Utilização) dos edifícios transacionados. Dito de outra forma, para a compra e venda de prédios urbanos ocorrer deixou de relevar se estas se encontram urbanisticamente regularizadas ou se tampouco possuem título urbanístico.
Esta alteração, por força da alínea f) do artigo 26º do Decreto-Lei n.º 10/2024 está em vigor, retroativamente, desde 01/01/2024.
Efeitos práticos: Até 31 de dezembro de 2023 existia um “enlace” entre as normas urbanísticas e transacionais (em matéria notarial), que impedia a compra e venda de edifícios ou frações que não demonstrassem ter o título urbanístico devido ou, em alternativa, a sua isenção (p. ex o caso dos imóveis anteriores a 1951 por força do Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de agosto de 1951, que aprovou o Regulamento Geral das Edificações Urbanas).
Assim, a apresentação do título urbanístico era condição sine qua non para a realização de quaisquer atos que envolvessem a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas frações autónomas, com expressa menção na escritura (cfr. Decreto-Lei n.o 281/99 de 26 de julho – agora revogado).
2. Quais os impactes urbanísticos e civílisticos desta alteração?
O legislador estipula que a verificação da legalidade urbanística passa a ser um facto externo ao ato transacional quebrando os elos (já ténues) entre as normas de direito urbanístico – material e procedimental – com o “direito civil transacional”.
Importa referir que a análise notarial que era feita até 31/12/2023 era não mais do que perfunctória, na medida em que o “o conservador, ajudante ou escriturário, o notário, o advogado ou o solicitador” careciam de competências para avaliar ou dar “fé pública” à conformidade do título urbanístico que era apresentado pelo vendedor: Se o título urbanístico “parecia” válido e autêntico (com reflexos na descrição predial e inscrição matricial), e o vendedor como tal o apresentava, nenhuma outra conclusão ou presunção poderia ser tirada. Ou seja, as escrituras feitas ao abrigo da lei anterior também não conferiam segurança jurídica urbanística aos compradores. A fé pública notarial não tinha a pretensão de abranger o continentur da licença de utilização apresentada pelo vendedor.
O comprador do edifício ou fração autónoma, antes da entrada em vigor do “simplex urbanístico”, poderia ser sempre surpreendido, em momento posterior à escritura pública de compra e venda, pela desconformidade da autorização de utilização com a concreta construção edificada.
Assim, do ponto de vista urbanístico nada muda: As normas legais e regulamentares aplicáveis em matéria de instrumentos de gestão territorial continuam a disciplinar os usos do edifício de acordo com o princípio tempus regit actum.
Sem prejuízo da propriedade do imóvel ou fração, o artigo 100.º-A do RJUE (Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro – na versão em vigor e agora alterada) continua a remeter a responsabilidade pela violação das condições previstas na licença, comunicação prévia ou autorização para os empreiteiros, os diretores da obra e os responsáveis pela fiscalização da operação urbanística. Sobre o (novo) proprietário do imóvel não recaem quaisquer responsabilidades na medida em que não tenha tido conhecimento das obras, trabalhos, edificações, usos e utilizações ilícitas em violação das normas legais e regulamentares aplicáveis, mormente os instrumentos de gestão territorial aplicáveis in situ.
O risco do comprador está na possibilidade, mais radical ( mas possível), de uma total desconformidade do edifício transacionado com a ordem jus-urbanística, que possa levar, inclusive, à adoção de medidas de tutela da legalidade urbanística sobre o imóvel (embargo, suspensão de ato de controlo prévio, determinação da realização de trabalhos de correção ou alteração, legalização, demolição total ou parcial de obras, reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes do início das obras ou trabalhos ou cessação da utilização de edifícios ou suas frações autónomas )– cfr. artigo 102º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.
O comprador que adquiriu o imóvel, e cuja perceção de legalidade urbanística tenha sido motivo determinante nessa vontade de concluir a transação, ao percecionar em momento posterior à aquisição a sua desconformidade, está legitimado para anular a transação imobiliária. Para tal deve demonstrar que o vendedor era conhecedor da essencialidade para o comprador da licitude do título urbanístico associado ao imóvel transacionado sobre que haja incidido o erro (situação que pode/deve ficar inscrita no próprio título de compra e venda). São aqui “avocadas” as regras civilísticas que estipulam que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade gera a anulabilidade do negócio quando a conformidade urbanística foi aspeto essencial para a formação da vontade do comprador. O erro-vício do comprador traduz-se numa representação inexata de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio, de tal forma que se o declarante estivesse esclarecido acerca dessa circunstância não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.
3. Segurança Jurídica no Mercado Imobiliário
Como referido supra as alterações introduzidas não mudam a realidade do edificado (de o imóvel adquirido estar ou não conforme com operação urbanística da qual resultou ou com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis).
Daqui decorre necessariamente um provável incremento e sofisticação da avaliação prévia da conformidade dos ativos imobiliários com as normas (urbanísticas) legais e regulamentares aplicáveis (due dilligence legal/urbanística).
Indubitavelmente, e se por um lado a alteração aqui em apreciação se traduz numa maior fluidez transacional e do tráfego jurídico, regras de prudência e de elementar senso comum levam-nos a concluir também que podem contribuir para um aumento da “insegurança jurídica” nas transações imobiliárias. Ideia, aliás totalmente disseminada na sociedade portuguesa desde o passado dia 8 de janeiro.
Saliente-se aliás, que nos casos em que houver recurso ao financiamento bancário para aquisição do imóvel e ainda que não seja legalmente exigível os bancos, credores hipotecários, para sua segurança poderão sempre exigir para os imóveis que ainda beneficiaram do regime da licença de utilização da apresentação deste documento.
Sobre a “dispensa” de apresentação e entrega da Ficha Técnica da Habitação ao comprador do edifício ou fração (aqui apenas habitacional)- tal como previsto no Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25 de março (no modelo aprovado pela Portaria n.º 817/2004, de 16 de julho) e que consiste num documento descritivo das características técnicas e funcionais de um prédio urbano reportadas ao momento da conclusão das obras de construção, reconstrução, ampliação ou alteração do mesmo – é possível antecipar a sua crescente irrelevância.
Mantendo-se, o que sucede para já, a obrigatoriedade do depósito da Ficha Técnica da Habitação nas Câmaras Municipais, os compradores, ao invés de a receberem no ato da escritura, para acederem a esta compilação técnica terão de solicitar a mesma ao Município. Também aqui entendemos haver uma oposição entre a desejável desburocratização dos atos jurídicos transacionais e a proteção do consumidor/segurança jurídica.
Por último, referir que se mantém inalterada a obrigação de apresentação de uma certidão relativa à recepção provisória das obras de urbanização e respetiva caução ou garantia bancária, resquício último, neste enquadramento, da ligação entre as regras de direito do urbanismo com as transacionais.
4. Conclusão
Por todo o exposto, a conclusão que tiramos sobre as alterações introduzidas pelo artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro, é de que:
(i) Simplifica os atos transacionais dos imóveis, e que a “dispensa de apresentação” do título urbanístico perde a função “indireta” de incentivar a legalidade urbanística dos edifícios transacionados.
(ii) Não modifica quanto à necessária conformidade dos edifícios com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis à data das respetivas operações urbanísticas, sendo de prever, no futuro uma maior sofisticação dos procedimentos de due dilligence urbanística, bem como um incremento dos pedidos de informação aos Municípios para que, antes das transações, confirmem a situação urbanística dos ativos imobiliários, com os adquirentes a exigirem na transação declarações complementares a este respeito.
(iii) Poder vir a constituir a uma desvalorização dos ativos (como já hoje acontece), pelas dúvidas (maiores) que manifestamente se coloquem sobre a sua conformidade com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis.
(iv) Considerando que cerca de 10% dos imóveis transacionados em Portugal são adquiridos por cidadãos não nacionais (número que aumenta nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto) a perceção dos riscos e a obtenção de informação urbanística credível e segura torna-se crítica para estes investidores.
Joana Pinto Monteiro | jpm@servulo.com
Manuel Alexandre Henriques | mah@servulo.com