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Acórdão do TC n.º 843/2022: a antecâmara da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do crime de maus tratos a animal de companhia?

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 20 Fev 2023

Foi publicado no dia 31 de janeiro de 2023, o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 843/2022, no âmbito do processo n.º 1283/2021, que decidiu “Julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal , igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto”.

É a terceira vez que o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a constitucionalidade do crime de maus tratos de animal de companhia (anteriormente, Acórdãos n.ºs 867/2021 e 781/2022), tendo decidido, novamente, no sentido da inconstitucionalidade.

Neste processo, o Tribunal apreciou as normas do n.º 3 do artigo 387.º, do Código Penal (CP), na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com os n.ºs 1 e 3 do artigo 389.º, do CP, igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.

Foram duas as questões de constitucionalidade que se suscitaram: i) saber se os preceitos do CP que criminalizam os maus tratos a animal de companhia visam tutelar algum bem jurídico constitucionalmente protegido e, em caso, afirmativo proceder à sua identificação; ii) aferir se o tipo legal de crime viola o princípio da legalidade, designadamente no que diz respeito ao princípio da tipicidade da lei penal, previsto no n.º 1 do artigo 29.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Relativamente à primeira questão, o Tribunal começa por evidenciar que, “(…) especificamente no texto da Constituição portuguesa, basta uma simples leitura do mesmo para concluir que ela não contém, literal e expressamente, qualquer normativo de onde se possa retirar, de forma direta e explícita, a proteção do bem-estar dos animais (de companhia), não sendo, portanto, os animais considerados, de forma explícita, como objeto de tutela jurídico-constitucional”. Acresce que, foi ao arrimo desta posição – inexistência de bem jurídico com respaldo constitucional – que o TC, nos acórdãos anteriormente proferidos, julgou inconstitucional a criminalização do crime de maus tratos a animal de companhia, por violação do n.º 2 do artigo 18.º, da CRP. Todavia, do mais recente acórdão, depreende-se que o Tribunal não formulou o seu juízo de inconstitucionalidade por violação do aludido preceito, isto é, não foi a inexistência de bem jurídico constitucionalidade protegido que o levou a concluir pela inconstitucionalidade. De facto, avança-se que o bem jurídico protegido é o “bem-estar dos animais de companhia”, tendo o Tribunal entendido que “ou não se aceita, pura e simplesmente, que o bem jurídico ‘tutela do bem-estar dos animais de companhia’ esteja contemplado na Constituição – pelo que, tratando-se, apenas, de bem jurídico-penal sempre cederá perante bens jurídicos constitucionalmente contemplados”; ii) “ou se aceita que essa tutela pode derivar-se da proteção de outros bens jurídicos abrigados no texto constitucional, por via, v.g., da proteção do ambiente ou da dignidade da pessoa humana – pelo que acabará por ser uma tutela secundária ou de segundo plano, pois não se trata de uma tutela autónoma, antes se tratando de uma tutela funcionalizada ou aos interesses humanos ou à necessidade de garantir o equilíbrio dos ecossistemas”. Consequentemente, verifica-se que o Tribunal Constitucional não procedeu à identificação concreta do preceito constitucional onde (direta ou indiretamente) poderia alicerçar-se a proteção do referido bem jurídico.

No que diz respeito à segunda questão (rectius atender ao princípio da legalidade, designadamente na vertente do princípio da tipicidade da lei penal), observa-se que foi a sua violação que suportou agora o juízo de inconstitucionalidade das normas de maus tratos a animal de companhia (n.º 3 do artigo 387.º e artigo 389º, do CP). Com efeito, decorrendo do princípio da legalidade penal “o dever de formular as normas penais de forma clara e precisa”, de modo que os destinatários das normas (penais) possam destrinçar as condutas que lhes estão penalmente proibidas das penalmente lícitas, entendeu o Tribunal que os tipos legais mencionados não tinham suficiente determinabilidade com base nos argumentos que, sucintamente, se referirá de seguida.

Primeiro, no que se refere ao n.º 1 do artigo 389.º, do CP, o Tribunal alude à  “amplitude e falta de concretização” do conceito de animal de companhia constante daquele preceito, sendo que o n.º 3 do artigo 389.º, que remete para o Sistema de Informação de Animais de Companhia, criado pelo Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho, que por sua vez remete para espécies referidas no anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e no anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, “nascidos ou presentes no território nacional”, não só estende a abrangência do n.º 1 do artigo 389.º a esses animais (inclusivamente nos em “que se encontrem em estado de abandono ou errância”), como também não permite “clarificar ou esclarecer o conceito de “animal de companhia” constante nesse primeiro normativo”.

Segundo, relativamente ao disposto no artigo 387.º (Morte e maus tratos de animal de companhia), o Tribunal Constitucional começa por avançar com a ideia de que, ainda exista alguma similitude deste preceito com o de maus tratos/violência doméstica, a transposição da doutrina e jurisprudência relativas a estes crimes para o primeiro “trata-se de opção discutível, um vez que “esse tipo-de-ilícito é bem mais descritivo e pormenorizado”. De seguida, debruçando-se em particular na redação do n.º 3 do artigo 387.º, do CP, o Tribunal coloca várias questões e dúvidas que se prendem com “a descrição legal do tipo-de-ilícito objetivo” e que evidenciam que não se consegue apreender o que, verdadeiramente, cai no âmbito desta “fattispecie”. Assim sendo, o Tribunal entendeu que o destinatário “comum” deste preceito legal não poderia “‘ler’ esta norma e saber, sem mais, quando poderá (ou não), v.g., infligir dor ou sofrimento (pressupondo que são algo de diverso no âmbito deste crime) a um animal sem cometer este crime (e até, desde logo, saber o que é – ou não – um animal de companhia), sendo antes indeterminável o conteúdo e, consequentemente, também o âmbito impositivo e punitivo resultante deste tipo penal”. Motivo pelo qual se considerou que não estavam cumpridas as exigências mínimas de determinabilidade da lei penal decorrentes do princípio da legalidade.

Assim sendo, uma vez que o artigo do 387.º do CP  foi julgado inconstitucional pelos acórdãos nºs 867/2021 e 781/2022, juízo que foi posteriormente reafirmado pelo presente Acórdão (n.º 843/2022), e tendo transitado em julgado todas decisões,  o Ministério Público, nos termos do n.º 3 do artigo 281.º da CRP e do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante LTC), promoveu o processo de fiscalização abstrata sucessiva,  para que o Tribunal Constitucional aprecie, com vista a eventual declaração com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma em causa, porquanto foi julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos (cfr. SMMP, disponível em: https://smmp.pt/smmp-na-imprensa/maus-tratos-a-animais-tribunal-constitucional-ministerio-publico/). Por sua vez, caso o TC venha a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral do artigo 387.º, do CP, observar-se-ão os efeitos previstos no artigo 282.º da CRP, não havendo lugar à aplicação daquela norma.

Em suma, o Direito Penal não pode mostrar-se “desligado” da realidade e do movimento legítimo a que se assiste nos vários países (inclusivamente em Portugal) de reforço da proteção dos direitos dos animais, sendo certo que a sua intervenção neste domínio (como em todos) implica que se respeite o princípio da dignidade penal, associado à tutela de bens jurídico-penais e o princípio da última ratio.

Resta aguardar pelo acórdão do Tribunal Constitucional para perceber quais serão os próximos passos: não aplicação da norma e (eventual) consagração de um novo tipo legal de crime que respeite os princípios referidos; ou proceder à (e/ou reforçar a) sua tutela ao abrigo de outros ramos do direito.

Cláudia Amorim | ca@servulo.com

Juliana Campos | jca@servulo.com

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