Atenção, o seu browser está desactualizado.
Para ter uma boa experiência de navegação recomendamos que utilize uma versão actualizada do Chrome, Firefox, Safari, Opera ou Internet Explorer.

A indemnização de danos imateriais: A insuficiência da violação do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados e a desnecessidade de um limiar mínimo de gravidade

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 11 Mai 2023

No dia 4 de maio de 2023, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu um acórdão[1] pelo qual veio declarar que o artigo 82.º, n.º 1 do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (“RGPD”), deve ser interpretado no sentido de que:

i) A simples violação das disposições do RGPD não é suficiente para conferir um direito de indemnização;

ii) Opõe-se a uma norma ou a uma prática nacional que subordina a indemnização de um dano imaterial à condição de o dano sofrido pelo titular dos dados atingir um certo grau de gravidade; e

iii) Para efeitos da fixação do montante da indemnização devida a título do direito de indemnização, os juízes nacionais devem aplicar as normas internas de cada Estado-Membro relativas ao alcance da indemnização pecuniária, desde que sejam respeitados os princípios da equivalência e da efetividade do direito da União.

Direito de indemnização

O artigo 82.º, n.º 1, do RGPD atribui a qualquer pessoa que tenha sofrido danos materiais ou imateriais devido a uma violação do Regulamento o direito a receber uma indemnização do responsável pelo tratamento ou do subcontratante pelos danos sofridos.

As ações destinadas ao exercício do direito de indemnização devem ser apresentadas perante os tribunais competentes nos termos do direito do Estado-Membro em que o responsável pelo tratamento ou o subcontratante tenham estabelecimento ou, em alternativa, do Estado-Membro em que o titular dos dados tenha a sua residência habitual.

O litígio

No exercício da sua atividade, a Österreichische Post, sociedade austríaca que presta serviços postais,recolheu informações relativas às afinidades partidárias da população austríaca, visando a definição de endereços de “grupos-alvo” para fins de publicidade eleitoral. Os dados tratados sobre um determinado cidadão levaram-na concluir que este tinha uma elevada afinidade com certo partido político.

Ainda que os dados não tenham sido transmitidos a terceiros, o referido cidadão, que não havia consentido no tratamento dos seus dados pessoais, instaurou uma ação no tribunal austríaco, afirmando que se sentiu ofendido pelo facto de lhe ter sido atribuída uma afinidade com o partido em questão e que isso lhe causou grande descontentamento, perda de confiança e humilhação.

Tanto o tribunal de primeira instância quanto o tribunal de recurso condenaram a sociedade a cessar o tratamento dos dados pessoais do cidadão, mas indeferiram o pedido de indemnização do dano imaterial alegadamente sofrido.

Ambas as partes recorreram ao Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça da Áustria), que, perante dúvidas relativas ao alcance do direito de indemnização previsto no artigo 82.º do RGPD, suspendeu a instância e questionou o TJUE sobre se a simples violação do RGPD basta para que o direito de indemnização seja conferido, se a indemnização depende de um grau mínimo de gravidade do dano imaterial sofrido e, por fim, que regras devem balizar a fixação do montante da indemnização.

A insuficiência de uma violação das disposições do RGPD

De acordo com o entendimento adotado pelo TJUE, os conceitos de danos materiais ou imateriais e de indemnização pelos danos sofridos deverão ser considerados conceitos autónomos do direito da União Europeia e interpretados uniformemente em todos os seus Estados-Membros, dado que o regime do artigo 82.º, n.º 1 do RGPD não dispõe de outro modo.

Segundo o TJUE, o direito de indemnização previsto no artigo 82.º, n.º 1 do RGPD depende da verificação de três requisitos cumulativos: (i) a existência de um dano; (ii) uma violação do RGPD; e (iii) um nexo de causalidade entre aquele dano e esta violação. A menção autónoma, na letra do artigo, a dano e indemnização, bem como o contexto em que a disposição está inserida, corroboram tal interpretação.

Outras referências do RGPD (em particular considerandos 75, 85 e 146) mostram, no entender do TJUE, que a mera violação das suas disposições não implica necessariamente um dano e que a existência de um nexo de causalidade entre dano e violação é necessária para fundamentar o direito de indemnização.

O TJUE sublinha ainda que a ação destinada a exigir uma indemnização distingue-se de outras vias de recurso previstas no RGPD e que não exigem a verificação de danos individuais, como é o caso do direito de apresentar reclamação a uma autoridade de protecção de dados, ou de intentar acção contra ela[2], ou da aplicação de coimas ou outras sanções[3].

Assim, o artigo 82.º, n.º 1, do RGPD, deve ser interpretado no sentido de que a simples violação das suas disposições não é suficiente para conferir um direito de indemnização. 

A gravidade do dano imaterial sofrido

O direito de indemnização conferido pelo artigo 82.º, n.º 1, do RGPD poderá fundamentar-se na existência de danos materiais ou imateriais. Não é referido, porém, qualquer limiar de gravidade que tais danos devem atingir para poderem ser indemnizados.

Tendo em conta o contexto em que aquele artigo está inserido, em especial a circunstância de se dizer no RGPD que o conceito de dano “deverá ser interpretado em sentido lato”[4], bem como as finalidades prosseguidas pelo RGPD, entre as quais assegurar“um nível de proteção coerente e elevado das pessoas singulares e eliminar os obstáculos à circulação de dados pessoais na União” e “a aplicação coerente e homogénea das regras de defesa dos direitos e das liberdades fundamentais das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais[5], a circunscrição do conceito de dano indemnizável a danos de uma certa gravidade seria contraditória.

A limitação da indemnização de um dano imaterial a um certo limiar de gravidade poderia, segundo o TJUE, prejudicar a coerência do regime instituído pelo RGPD, visto que a graduação deste limiar variaria em função da apreciação dos juízes de cada um dos Estados-Membros chamados a pronunciar-se sobre a gravidade do dano. No entanto, daqui não resulta que o titular dos dados fique dispensado de demonstrar que as consequências negativas por si sofridas em decorrência da violação das normas do RGPD constituem um dano imaterial.

Assim, o artigo 82.º, n.º 1, do RGPD, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma norma ou a uma prática nacional que subordina a indemnização de um dano imaterial, na aceção desta disposição, à condição de o dano sofrido pelo titular dos dados atingir um certo grau de gravidade.

A fixação do montante indemnizatório

Em conformidade com a jurisprudência do TJUE[6], na falta de regras da União Europeia em determinada matéria, caberá à ordem jurídica de cada Estado-Membro estabelecer as regras processuais das ações judiciais, ao abrigo do princípio da autonomia processual, desde que essas regras não sejam, nas situações abrangidas pelo direito da União Europeia, menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil, o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União Europeia (princípio da efetividade).

Caberá então à ordem jurídica de cada Estado-Membro fixar as modalidades de ações destinadas a garantir a salvaguarda do direito de indemnização conferido pelo artigo 82.º do RGPD, nomeadamente os critérios que permitam determinar o montante da indemnização devida.

O TJUE sublinha, porém, que tal indemnização tem natureza compensatória e deverá permitir uma reparação integral e efetiva dos danos sofridos por violação das suas disposições (em linha com o enunciado no considerando 146 do RGPD). Não será necessário, pois, impor uma indemnização de natureza punitiva[7].

Assim, o artigo 82.º do RGPD deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos da fixação do montante da indemnização devida a título do direito de indemnização consagrado neste artigo, os juízes nacionais devem aplicar as normas internas de cada Estado?Membro relativas ao alcance da indemnização pecuniária, desde que sejam respeitados os princípios da equivalência e da efetividade do direito da União.

Maria Luísa Esgaib Borges | mlb@servulo.com



[1] Disponível aqui.

[2] Artigos 77.º e 78.º do RGPD.

[3] Artigos 83.º e 84.º do RGPD.

[4] Considerando 146 do RGPD.

[5] Considerando 10 do RGPD.

[6] v. Acórdãos de 13 de dezembro de 2017, El Hassani, C?403/16, disponível aqui, e de 15 de setembro de 2022, Uniqa Versicherungen, C?18/21, disponível aqui.

[7] O tribunal adota o entendimento de Manuel Campos Sánchez-Bordona, advogado-geral no processo, cujas conclusões, apresentadas em 6 de outubro de 2022, podem ser lidas aqui.

Advogados Relacionados
Maria Luísa Esgaib Borges