Termo da Suspensão dos Prazos dos Procedimentos de Contratação Pública (Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril)
SÉRVULO PUBLICATIONS 07 Apr 2020
1. Entre as diversas medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do COVID-19 aprovadas nos últimos dias, é sabido que uma das mais problemáticas consistiu naquela que foi inserida na alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que determinou a suspensão dos “prazos administrativos e tributários que corram a favor dos particulares” (cfr. alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º), a qual, embora tivesse densificado, no n.º 7 do mesmo artigo, quais os “prazos tributários” que estariam ou não afetados pela suspensão, não realizou qualquer esclarecimento adicional quanto aos “prazos administrativos”.
No que especificamente diz respeito aos procedimentos de contratação pública, essa equívoca redação deu origem a uma dramática incerteza entre os decisores públicos e os operadores económicos, que se viram rapidamente confrontados com interpretações opostas quanto às questões de saber (i) se a intenção legislativa seria realmente a suspender os prazos de alguns ou de todos os procedimentos de contratação pública; (ii) se todos os prazos estariam suspensos ou se apenas estariam suspensos aqueles que fossem estabelecidos “em favor dos particulares” (o mesmo é dizer: tratava-se da dúvida de saber se este segmento normativo dizia respeito apenas aos prazos tributários ou também aos prazos administrativos); (iii) em caso afirmativo, como identificar um prazo favorável aos particulares; (iv) em caso negativo (isto é, admitindo que ficariam todos os prazos administrativos suspensos, e não apenas os favoráveis aos particulares), se e como poderia o particular colaborar com a Administração para evitar essa suspensão.
2. Porém, mesmo abstraindo dessa dificuldade interpretativa, mais problemática foi a circunstância de essa redação ter tornado manifesto que o legislador português não tinha conseguido atingir o ponto de equilíbrio na formulação de medidas de suspensão da atividade económica. Com efeito, se é verdade que o legislador mantinha a preocupação de reduzir ao mínimo os contactos sociais para evitar a disseminação do vírus – o que dependia de condicionar fortemente o exercício da atividade no mercado –, a Lei n.º 1-A/2020 não soube salvaguardar os âmbitos da atividade contratual que não poderiam ser suspensos nem mesmo nos momentos mais críticos da pandemia, sob pena de rotura no funcionamento da Administração Pública.
Note-se, a esse propósito, que a Lei n.º 1-A/2020, não obstante se propor ratificar as medidas excecionais aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, não teve sequer a clarividência suficiente para recordar o intérprete de que a suspensão geral dos prazos administrativos não prejudicaria o decurso dos procedimentos excecionais que eram precisamente habilitados pelo mesmo diploma (algo que, a título de exemplo, o legislador espanhol, no Real Decreto 463/2020, soube corretamente fazer).
Mas, admitindo que essa conclusão quanto à salvaguarda daqueles procedimentos excepcionais poderia, pelo menos, ser extraída no quadro de uma interpretação sistemática, o ponto crucial consistiu em não se discernir sequer a premência de manter em funcionamento certos âmbitos da atividade contratual da Administração, quando incidissem sobre a obtenção de bens, serviços e obras essenciais para o funcionamento dos serviços públicos. Com efeito, na maioria dos casos, os procedimentos para aquisição dessas prestações essenciais não poderiam beneficiar das medidas excecionais que o Decreto-Lei n.º 10-A/2020 reservou unicamente para o combate (em sentido amplo: prevenção, contenção, mitigação e tratamento) à infeção epidemiológica e para a reposição da normalidade na sequência da mesma. Ninguém discutiria que a generalidade das entidades adjudicantes portuguesas que não exercem competências em matéria de saúde (ou também aquelas que as exercem, mas relativamente a aquisições necessárias ao seu funcionamento interno e que só indiretamente contribuem para essas competências sanitárias) precisariam de obter utilidades económicas essenciais que se não compadeceriam com a paralisação total da sua atividade contratual, ainda que se não enquadrassem no âmbito excecional do Decreto-Lei n.º 10-A/2020. Mas foi esse evidente conjunto de necessidades aquisitivas que o legislador não soube salvaguardar.
3. É essa falha que justifica que, poucos dias depois, a Assembleia da República venha novamente intervir para aprovar a nova Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, que recua na sua posição inicial e afasta os procedimentos de contratação pública da regra geral de suspensão de prazos procedimentais.
Nos termos previstos no n.º 2 do seu artigo 7.º-A, “a suspensão dos prazos administrativos previstos na alínea c) do n.º 9 do artigo anterior não é aplicável aos prazos relativos a procedimentos de contratação pública, designadamente os constantes do Código dos Contratos Públicos, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro”.
Por esta via, clarifica-se, para o futuro, qualquer dúvida interpretativa acerca do decurso dos prazos procedimentais na contratação pública: a suspensão não se mantém e tais prazos podem voltar a correr normalmente.
4. Todavia, é claro que esta nova solução – em sentido rigorosamente oposto à anterior – cria dois novos problemas que os operadores jurídicos terão de resolver imediatamente.
Num primeiro plano, no que diz respeito ao regime a vigorar para o futuro, a solução adotada incorre num extremo oposto àquele em que caiu a Lei n.º 1-A/2020, provocando a situação que precisamente se pretendera evitar com a aprovação desse primeiro diploma: fazer reiniciar os contactos interpessoais e sociais entre os serviços dos operadores económicos que, a partir de agora, se descobrirão novamente forçados a responder aos prazos dos procedimentos pré-contratuais.
Deve ter-se em mente, com efeito, que, apesar de se saber que boa parte da atividade contratual das entidades adjudicantes decorre hoje obrigatoriamente em plataforma eletrónica e não exige deslocações físicas para a interação com os operadores económicos (cfr. artigo 62.º do Código dos Contratos Públicos), dificilmente se suporá que a maioria dos interessados em contratar possa dispensar em absoluto a realização de contactos pessoais para preparação de todos os atos de que depende a participação num procedimento. A recolha de elementos para elaboração de uma proposta, a prestação de esclarecimentos eventualmente solicitados, a obtenção de dados para eventuais pronúncias em audiência prévia ou posteriores impugnações, a obtenção de certos documentos de que não possam ser conseguidos por via eletrónica, entre tantos outros exemplos, constituem um forte incentivo a dinamizar os contactos sociais que o legislador precisamente necessitava de restringir. Reconhece-se, portanto, que cada procedimento de contratação pública que seja iniciado ou mantido em curso representa um estímulo para desobediência às diretrizes de redução de contactos sociais que se supunha serem exigidas pelo combate a uma emergência de saúde pública.
Essa era, pois, a preocupação que – embora de um modo excessivo, sem acautelar os procedimentos indispensáveis para a manutenção de serviços públicos essenciais – a Lei n.º 1-A/2020 procurava manter. Incorrendo no extremo oposto e preocupando-se unicamente com a estabilidade do funcionamento da Administração Pública, a nova Lei n.º 4-A/2020 ignora o estímulo que esses procedimentos provocarão para a recuperação dos contactos pessoais que se deveria pretender evitar.
5. Num segundo plano, mostra-se especialmente significativa a intenção legislativa de consolidação do regime de suspensão de prazos procedimentais aplicável antes da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020.
Com efeito, o referido artigo 7.º-A também inclui um n.º 3 que prevê que “os prazos procedimentais no âmbito do Código dos Contratos Públicos que estiveram suspensos por força dos artigos 7.º e 10.º da presente lei, na sua redação inicial, retomam a sua contagem na data da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.”
Com essa redação, o legislador acaba de admitir que:
i) Entre as dúvidas que se suscitaram com a Lei n.º 1-A/2020, a interpretação normativa correta será a de que os prazos dos procedimentos de contratação pública chegaram a estar efetivamente suspensos;
ii) Além disso, o legislador pretende que essa suspensão seja rigorosamente mantida até à entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020 – que é fixada pelo seu artigo 7.º no dia seguinte ao da sua publicação, isto é, 7 de abril de 2020[1] –;
iii) Em consequência, independentemente de qual tenha sido a opinião (previsivelmente divergente) adotada por cada entidade adjudicante em Portugal, os prazos dos procedimentos de contratação pública não podem ter corrido até ao dia 7 de abril de 2020;
iv) Os operadores económicos não podem ter ficado prejudicados por não terem praticado qualquer ato procedimental durante esse período;
v) Em todo o caso, do ponto de vista do mérito legislativo, reconhece agora o legislador que essa solução não será feliz, porque só assim se explicará esta retratação legislativa e a aprovação da solução rigorosamente oposta à anterior, terminando a suspensão dos prazos procedimentais.
Pedro Fernández Sánchez | pfs@servulo.com
[1] Insista-se em que este n.º 3 do artigo 7.º-A escolhe como termo da suspensão o dia da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020, e não qualquer das datas que o seu artigo 6.º fixou para a sua “produção de efeitos”. E isto porque essas datas são fixadas por referência ao início da produção de efeitos dos próprios diplomas de março, o que implicaria que, afinal, a suspensão teria terminado logo no exato momento em que se supunha ter começado, conduzindo a que, por absurdo, os prazos procedimentais nunca tivessem estado efetivamente suspensos. É óbvio que a redação escolhida para o n.º 3 do novo artigo 7.º-A, agora aditado, esclarece que a intenção legislativa é a de salvaguardar o período de suspensão já decorrido, determinando que o termo da suspensão apenas decorra para o futuro.