Simplex Urbanístico – Das unidades de execução às cedências para Habitação Pública
SÉRVULO PUBLICATIONS 05 Feb 2024
A. Introdução
Uma das questões com que se debate o urbanismo e a sua implementação é como articular o desenho urbano com o direito de propriedade, ou como passar da teoria à prática, executando em dado local o disposto nos planos territoriais.
Entre nós, um dos mecanismos previstos para o efeito são as unidades de execução (UE). É mais frequente a sua adoção em propriedades detidas por um único proprietário, do que propriamente como forma de agregar vários proprietários. Alguns planos preveem mecanismos de compensação entre proprietários ou entres estes e a Administração, mas a sua concretização encontra-se pouco explorada. Salvo algumas exceções, é pouco frequente os municípios recorrerem à expropriação para executar os planos municipais por via de UE.
Outra questão atualmente na ordem do dia consiste na crise de habitação, decorrente da falta de oferta e de disponibilização de terrenos infraestruturados para construção.
Este update incide, por um lado, sobre as alterações promovidas pelo Simplex Urbanístico (Simplex) com vista a promover a utilização da figura da UE, através da simplificação de procedimentos urbanísticos associados à sua implementação. Por outro lado, incide sobre os novos encargos urbanísticos criados pelo legislador, relacionados com a oferta de habitação pública, por via do novo regime das cedências.
Prevê-se que as novas medidas relacionadas com as UE e encargos com habitação, entrarão em vigor no próximo dia 4 de março de 2024.
B. Novo olhar sobre as unidades de execução
O novo olhar sobre as UE com certo conteúdo potencia a adoção do procedimento de comunicação prévia ou situações de isenção de controlo prévio precedidas de pedido de informação prévia (PIP). Para mais detalhes sobre o regime dos PIP, ver update anterior (“Alterações ao Pedido de Informação Prévia…”), da autoria de Filipa Névoa.
O legislador pretende assim promover a figura da UE com vista a dotar a mesma de um novo protagonismo, embora sem inovar no que toca a (des)entendimentos entre proprietários. Às normas existentes no regime dos instrumentos de gestão territorial (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio - RJIGT) que concretizam a ratio e regulam a delimitação das UE, o Simplex acrescentou normas relativas ao seu conteúdo no mesmo diploma e integrou esta figura no regime jurídico da urbanização e edificação (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro - RJUE).
Qual é então conteúdo de uma UE que nos permite seguir a via da comunicação prévia em certa operação urbanística?
Depende do tipo de operação urbanística. São elencados elementos diversos em função de cada tipo, especificados abaixo, sendo certo que nada impede uma única UE de integrar elementos referentes a vários tipos, de forma qualificada.
O tronco comum dos elementos das UE referentes a operações de loteamento e a obras de construção, de alteração ou de ampliação corresponde a:
a) Polígono de base para a implantação de edificações;
b) Área de construção;
c) Divisão em lotes (caso do loteamento) / definição das parcelas (caso de construção, alteração ou ampliação);
d) Número máximo de fogos.
Os elementos específicos que acrescem ao tronco comum correspondem às situações de:
a) UE destinadas a operações de loteamento (e / ou obras de urbanização e trabalhos de remodelação de terrenos), que incluem implantação e programação de obras de urbanização e edificação.
b) UE destinadas a obras de construção, de alteração ou de ampliação, que incluem:
i. Alinhamentos;
ii. Altura total das edificações ou a altura das fachadas;
iii. Usos.
Considera-se que a UE dispõe de programação das obras de urbanização e edificação quando a sua delimitação contemple:
a) Obras de urbanização a executar e ligações às infraestruturas gerais; e
b) Áreas de cedência destinadas à implantação de espaços verdes, equipamentos de utilização coletiva e infraestruturas viárias; e
c) Identificação dos custos com as obras de urbanização; e
d) Calendarização das obras de urbanização e das obras de edificação.
Visto isto, qual é conteúdo de uma UE que nos permite beneficiar da isenção de controlo prévio em certa operação urbanística, mediante prévia aprovação de pedido de informação prévia?
É o mesmo apontado acima para a comunicação prévia. Ou seja, no caso de delimitação de UE com as características já explanadas, o promotor pode escolher entre apresentar uma comunicação prévia ou obter a aprovação de um PIP. Apesar de se poder entender que, no primeiro caso, terá responsabilidade acrescida, a verdade é que a prévia delimitação de uma UE pela câmara municipal implica sempre um maior nível de responsabilidade decorrente do exercício dos poderes públicos e um menor nível de responsabilidade dos atores privados. Quando o risco é elevado, pode ser melhor delimitar uma UE.
A delimitação de UE terá, assim, a virtualidade de possibilitar uma certa intermediação entre os interesses públicos e privados e afastar os riscos que têm sido apontados ao Simplex, porventura harmonizando tais interesses na criação de mais habitação privada e pública. Todavia, subsistem os riscos associados à necessidade de gerar consensos entre os particulares, à paralisação de áreas em que tais consensos não sejam alcançados e à legitimidade dos intervenientes para realizar as operações urbanísticas.
C. Novas cedências para Habitação Pública
A UE consiste num instrumento de programação da execução dos planos municipais, que serve para determinar a redistribuição dos benefícios e encargos. Aos encargos já consagrados, o Simplex veio acrescentar as cedências destinadas a habitação pública, a custos controlados ou para arrendamento acessível (Habitação Pública). Não sendo exclusivo de UE (aplica-se, designadamente, a operações de loteamento e de impacte semelhante e, eventualmente, relevante), este encargo irá alterar as contas das operações urbanísticas que lhe estão subjacentes.
Esta solução, apesar de inovadora na nossa ordem jurídica, já se encontra plasmada em ordenamentos jurídicos de outros países (designadamente, no Reino Unido). No entanto, não se afigura isenta de dúvidas. Vejamos.
a) Parâmetros aplicáveis – um encargo triplo?
Em primeiro lugar, não é claro como vai ser posta em prática após 4 de março de 2024, na medida em que os planos municipais que devem definir os parâmetros urbanísticos aplicáveis a este novo encargo, ainda não os concretizam. Ainda não é claro também se os parâmetros urbanísticos do projeto de Habitação Pública serão contabilizados no cômputo geral do aproveitamento urbanístico atribuído ao proprietário pelos planos territoriais aplicáveis. Caso o sejam, tal implicará a diminuição do aproveitamento urbanístico da operação urbanística em causa. Resta ainda saber como vão os parâmetros aplicáveis articular-se com os parâmetros gerais definidos para as áreas verdes e equipamentos de utilização coletiva a criar (ou seja, se a Habitação Pública vai gerar mais cedências para outros fins – o que seria uma terceira dimensão deste encargo).
No limite, poderá dar origem a um encargo triplo para o proprietário: perda de solo, perda de edificabilidade e mais cedências para outros fins.
b) Pagamentos por falta de cedências para Habitação Pública
Em segundo lugar, também não é claro se as cedências para Habitação Pública são, apenas em regra, de realização obrigatória e se a falta das mesmas dará lugar a qualquer tipo de pagamento ao município, conforme parece decorrer da alteração do artigo 14.º da lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo. Ora, o Simplex não alterou a norma do RJUE que prevê (simplificando) que, se o prédio objeto da operação urbanística já estiver servido por infraestruturas ou não se justificar a localização de qualquer equipamento ou espaço verde público no referido prédio, não há lugar a qualquer cedência para esses fins, ficando o proprietário obrigado ao pagamento de uma compensação ao município. Fica, pois, a dúvida de saber se o RJUE abrange ainda as situações em que não se justifica a cedência de áreas destinadas a Habitação Pública e se, por conseguinte, o promotor ficará, em qualquer circunstância, obrigado à cedência destas áreas. Caso abranja, resta saber qual a natureza do pagamento realizado por falta de cedência para Habitação Pública.
c) Habitação Pública, coesão social e arquitetura
Em terceiro lugar, apenas na prática será possível verificar como será feita a concretização destas cedências: em que parcelas, edifícios ou locais? E com que tipos de Habitação Pública?
O legislador cria um novo procedimento mais simples de reclassificação do solo rústico - exclusivamente público - em urbano, destinado a habitação. Isto coloca a Administração numa situação de vantagem relativamente aos particulares que pretendam reclassificar solo rústico em urbano.
Cria também novas isenções de controlo prévio alargando as mesmas a várias entidades da Administração, a cooperativas e adjudicatárias de procedimentos de contratação pública, desde que para fins de habitação e alojamento temporário.
Em suma, a criação de nova Habitação Pública é beneficiada por cedências para o domínio municipal, pela simplificação da reclassificação do solo (dependente da Administração) e por novas isenções de controlo prévio.
A tónica colocada pelo Simplex na Habitação Pública encerra o risco de criação de áreas monofuncionais exclusivamente destinadas a este uso (“guetos”), em prejuízo da multifuncionalidade e da coesão social (e do Decreto Regulamentar n.º 15/2015, de 19 de agosto, que prevê o contrário). Um exemplo prático desta situação encontra-se no Programa Especial de Realojamento ocorrido na década de 1990. Valerá a pena aprender com os erros do passado.
Por outro lado, fica por apurar como se garantirá a qualidade arquitetónica dos projetos urbanísticos que incluam a Habitação Pública, pois é possível que o investimento disponível para o efeito seja menor que aquele canalizado para a habitação privada e que as equipas técnicas sejam diversas.
A nosso ver, estas medidas encerram algumas dificuldades práticas atinentes à sua aplicação.
A simplificação dos procedimentos nos casos de UE contribuirá para eliminar custos de contexto, mas mantém a necessidade de se alcançar consensos entre os proprietários e a Administração para efeitos da distribuição dos benefícios e encargos, sem abordar eventuais desentendimentos.
As cedências para Habitação Pública são um novo (possivelmente triplo) encargo para os promotores, cujos impactes na coesão social e na arquitetura terão de ser ponderados aquando da sua concretização. Esta solução recruta os promotores para o combate à crise habitacional, ainda sem conhecer (i) as carências habitacionais de cada município, que, naturalmente, são distintas em todo o território nacional e (ii) as medidas que serão adotadas pela Administração no âmbito das cartas municipais de habitação (numa fase embrionária).
Eduardo Gonçalves Rodrigues | egr@servulo.com
Francisca Saldanha Monteiro | fom@servulo.com