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Regime Jurídico do Maior Acompanhado: alterações ao Código Civil

SÉRVULO PUBLICATIONS 10 Dec 2018

A 14 de agosto de 2018 foi publicado o Regime Jurídico do Maior Acompanhado (Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), que substitui os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação previstos no Código Civil, prevendo um novo conjunto de medidas aplicáveis a adultos que, por doença, deficiência ou pelo seu comportamento, estejam impossibilitados de plena, pessoal e conscientemente exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres.

Neste sentido, a Lei n.º 49/2018 veio alterar, entre outros, o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código de Registo Civil e o Código de Processo Penal, entrando em vigor em fevereiro de 2018 (180 dias após a sua publicação).

O anterior regime das «incapacidades de maiores» dividia-se nos referidos institutos da interdição e da inabilitação. Quem sofresse de uma doença grave e incapacitante era equiparado aos menores, sendo-lhe atribuído um tutor. Quem sofresse de uma doença não totalmente incapacitante ou tivesse tendência que o justificasse, como, por exemplo, a prodigalidade, dispunha da assistência de um curador de que dependia a autorização para praticar determinados atos.

Como se afirma na exposição de motivos da correspondente Proposta de Lei n.º 110/XIII, «não pode hoje haver dúvidas em considerar a pessoa com deficiência como pessoa igual, sem prejuízo das necessidades especiais a que a lei deve dar resposta».

Manifesta-se uma preocupação que pretende ser o paradigma do regime em consonância com a Convenção das Nações Unidas[1], perentória na eliminação de qualquer discriminação desta natureza.

Coerentemente, o legislador pretende agora deixar o máximo de espaço possível à vontade e preferências efetivas do próprio «maior acompanhado». O princípio dominante passa a ser o do respeito pela sua vontade, em lugar do antigo princípio da prossecução do «interesse superior do incapaz».

Considerou, ademais, o legislador português que o regime existente tinha um carácter rígido, inflexível e estigmatizante, não se adaptandoàs concretas limitações do maior em causa e não dando o suficiente relevo ao papel da família, nem à necessária reserva da vida pessoal e familiar.

No essencial e em síntese, as alterações substantivas feitas visaram o seguinte:

  • aumentar a autonomia do maior impossibilitado até aos limites do possível;
  • estabelecer o controlo jurisdicional de qualquer constrangimento imposto ao maior acompanhado;
  • flexibilizar as medidas aplicáveis atendendo à singularidade da situação, isto é,aos concretos interesses pessoais e patrimoniais do visado (fazendo, para tal, intervir o Ministério Público sempre que necessário);
  • agilizar os procedimentos existentes.

A Lei n.º 49/2018 criou, portanto, o modelo de acompanhamento. O novo artigo 138.º do Código Civil reza que o maior acompanhado – que, por razões de saúde ou deficiência, mas também «pelo seu comportamento», não possa exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou cumprir os seus deveres - beneficiará de medidas de acompanhamento, tais como a sua representação ou a administração dos seus bens, por um acompanhante, na medida do necessário.

Atualmente, o acompanhamento deverá ser requerido pelo próprio ou pelo cônjuge, unido de facto, ou por qualquer parente sucessível, dependendo, contudo, de autorização do acompanhado, ou, independentemente desta autorização, pelo Ministério Público. A autorização poderá, ainda, ser suprida pelo tribunal quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente.

O tutor e o curador dão, assim, lugar ao «acompanhante» ou «aos acompanhantes» visto que a lei permite a sua «especialização» em função de determinadas atribuições. O acompanhante será designado judicialmente, mas escolhido pelo próprio acompanhado (caso não o seja, ou não possa ser, será designado oficiosamente pelo tribunal que escolherá a pessoa que melhor salvaguarde o interesse do beneficiário, preferencialmente um dos seus familiares de acordo com uma lista não taxativa).

Mantém-se a gratuitidade de tais funções, sem prejuízo da dedução de despesas, e reforça-se a necessidade de privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhado, estabelecendo-se mesmo que o acompanhante deve visitar o acompanhado, pelo menos, uma vez por mês e cumprir os seus deveres com a diligência de um «bom pai de família».

Uma importante alteração, pelo menos em função da referida mudança de paradigma, é que, em regra e salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário, serão livres, quer o exercício pelo acompanhado de direitos pessoais – como, por exemplo, os direitos de casar, de procriar, de educar os filhos, de se deslocar, de fixar domicílio ou de estabelecer relações com quem entender –, quer a celebração de negócios da vida corrente.

Na mesma senda, introduz-se a possibilidade de o maior acompanhado celebrar um mandato para a gestão dos seus interesses, prevenindo uma situação hipotética em que necessite de acompanhamento. O mandato seguirá o regime geral estabelecido no Código Civil e deverá ser aproveitado, o mais possível, pelo tribunal.

Em qualquer caso, as medidas de acompanhamento decretadas serão revistas periodicamente, num período mínimo de cinco anos, e o acompanhamento cessará, ou sofrerá alterações, mediante nova decisão judicial que assim o entenda.

Note-se também que foram ainda efetuadas alterações nos seguintes regimes substantivos: (i) casamento (artigos 1601.º, 1604.º, 1621.º, 1633.º, 1639.º, 1643.º e 1650.º), (ii) celebração de convenções antenupciais (artigo 1708.º), (iii) legitimidade para propositura de ação de separação de bens ou divórcio (artigos 1769.º e 1785.º), (iv) alimentos provisórios (artigo 1821.º), (v) perfilhação (artigos 1850.º, 1857.º  e 1860.º, (vi) responsabilidades parentais (artigos 1913.º e 1914.º) e (vii) testamento (2189.º).

Com a entrada em vigor do novo regime, todas as pessoas antes interditadas ou inabilitadas passarão a ter o estatuto de maiores acompanhados. Os tutores e curadores nomeados passarão a acompanhantes (com poderes gerais de representação no primeiro caso e, no segundo caso, cabendo-lhes autorizar os atos antes submetidos à aprovação do curador).

Todavia, e ainda que se pretenda a adoção de um conjunto de medidas flexíveis, são de antever dificuldades de aplicação. É muito difícil (e exige a disponibilidade e o contributo de várias partes) que os tribunais encontrem, para cada situação, a solução que simultaneamente proteja o indivíduo (ao abrigo da ideia de «solidariedade humana, reclamada pela própria instância ético-moral») e respeite a sua liberdade.

Em qualquer caso, terá de ser tido em consideração pelo juiz que está em causa uma das mais gravosas intromissões do Estado na esfera jurídico-privada do indivíduo.

Margarida Sepúlveda Teixeira | Rui Oliveira Alves

 mst@servulo.com | roa@servulo.com  



[1] Convenção das Nações Unidas, de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

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