Reforçar o sistema de acesso aos medicamentos: a mais recente alteração ao Estatuto do Medicamento
SÉRVULO PUBLICATIONS 20 Aug 2019
Com vista a regular de modo mais eficaz o circuito do medicamento, em particular dando resposta legislativa a fenómenos noticiados de rutura ou “perturbações no abastecimento de medicamentos”, o Governo, através do Decreto-Lei n.º 112/2019, de 16 de agosto, alterou pela décima segunda vez o já muito remendado Estatuto do Medicamento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto.
Na verdade, a preocupação não é o acesso atempado aos medicamentos mediante o estabelecimento de mecanismos mais céleres de aprovação de autorizações de introdução no mercado ou de avaliações prévias para o mercado hospitalar. O desiderato do legislador é introduzir mais eficácia num momento pós-autorizativo, centrando a sua atenção nos titulares das autorizações de introdução no mercado e nos distribuidores por grosso. Assim, são introduzidas (alíneas a), p), z) e ttt) do artigo 3.º do Estatuto do Medicamento) noções normativas de abastecimento do mercado, distribuição paralela, falta de um medicamento e rutura. Não se pode deixar de constatar que, com esta alteração ao artigo 3.º, são já 78 os conceitos que o diploma define ab initio, o que deixa bem patente a complexidade, especificidade e voracidade regulatória inerente a este regime jurídico.
Neste âmbito, a obrigação de fornecimento e dispensa e o princípio da continuidade do serviço, já antes consagrados no artigo 6.º do diploma, foram alvo de um intensivo desenvolvimento. Por um lado, a norma é expressa na sua aplicação aos titulares de autorização de introdução no mercado (‘AIM’) (novos n.os 2 e 3 do artigo 6.º). Por outro lado, a garantia de acesso aos medicamentos é, aqui, expressamente determinada como um dever de serviço público essencial, sendo tal consagração acompanhada de referências à proibição quer de limitações ao mesmo, quer da adoção de práticas negociais abusivas em todo o circuito do medicamento, tais como a imposição de condições discriminatórias de aquisição ou venda de medicamentos (cfr. artigo 6.º, n.os 1, 4 e 5), em termos que parecem constituir um regime especial face ao regime das práticas (individuais) restritivas do comércio, que a ASAE considerava abranger os medicamentos (mas sendo aqui competente o INFARMED, I.P., inclusivamente em matéria sancionatória, em mais uma idiossincrasia do direito português – alínea i) do n.º 2 do artigo 181.º - extremamente grave e imprecisa face ao teor e novidade da norma impositiva).
Quanto ao dever de colaboração e informação (artigo 9.º), o conceito de “falta de um medicamento” (enquanto indisponibilidade pontual que impede a satisfação de prescrição de determinada apresentação de um medicamento comercializado) é separado do de “rutura” (enquanto indisponibilidade temporária, potencial ou real, de fornecimento regular e contínuo). Em ambos os casos emerge da lei um dever expresso de notificação ao INFARMED, I.P. (norma dependente, no entanto, de regulamentação pelo INFARMED, I.P., pelo menos quanto às faltas de um medicamento). Note-se, no entanto, que o dever de fornecimento e de notificação das ruturas já existia antes.
Mas o fundamental no diploma é o seu direcionamento aos titulares de autorizações de introdução no mercado (v.g. o novo n.º 11 do artigo 29.º), no quadro desta conceção de a “garantia de acesso” constituir para os privados um “dever de serviço público essencial”, para lá do que exige a legislação da União Europeia. Os termos em que o legislador o faz são, contudo, excessivos, pois o dever de “assegurar a satisfação das encomendas”, nos termos expostos (n.os 6 e 7 do artigo 9.º) será virtualmente inexequível, razão talvez para o acento seguinte na auto-regulação incidental entre os “intervenientes da cadeia de abastecimento” (cfr. artigo 29.º, n.º 8), apesar da intenção limitativa que deriva da qualificação deste novo iter comercial como “obrigação independente e complementar da obrigação de fornecimento adequado e contínuo” (n.º 9). Paralelamente, o legislador tratou também das situações de “suspensão de comercialização ou retirada do mercado” (n.º 10), pela previsão de um plano de previsão de escassez (que faz sentido, parece, para eventual decisão de suspensão e apenas em alguns casos).
Mais do que as novas incompatibilidades aplicáveis aos diretores técnicos de fabrico, devem ser salientadas as alterações concretas introduzidas no regime da distribuição por grosso. O legislador reconhece agora expressamente – como era evidência – que a distribuição por grosso é não só realizada pelos clássicos distribuidores (94.º-A) mas também, bastas vezes, por operador logístico (v.g. 94.º-B), que está naturalmente sujeito à mesma autorização. Mas ao distinguir nos termos em que o faz, quanto ao regime aplicável, fica a dúvida sobre se a presente legislação não terá impacto sério e grave no sector da distribuição por grosso que pode pôr em causa até a sua viabilidade sem se salvaguardarem os interesses da saúde pública ou mesmo aqueles proclamados por este decreto-lei.
Refiram-se, ainda, duas previsões expressas: por um lado, a dispensa de necessidade de autorização de distribuição por grosso para o titular de uma autorização de introdução no mercado, para a venda dos medicamentos objecto dessa AIM (ainda que se exija que os venda através de distribuidor por grosso – distribuidor no mercado nacional ou operador logístico –, o que diminui o alcance da medida, pois parece impedir a distribuição direta às farmácias sem essa autorização, a final - artigo 95.º-A, quanto a este regime de registo); por outro lado, a dispensa de vistoria no caso de pedidos de autorização de distribuição por grosso para instalações já autorizada (v.g. n.º 3 do artigo 94.º e n.º 5 do artigo 97.º).
Resta indagar, ao terminar esta breve e fragmentária apresentação das alterações legislativas, a que entidades se dirige a norma transitória (artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 112/2019): certamente aos distribuidores paralelos de medicamentos centralizados (artigo 102.º-A), mas também aos titulares de autorizações de introdução no mercado que pretendam realizar a distribuição dos “seus” medicamentos através de distribuidores por grosso independentes, sejam distribuidores stricto sensu ou operadores logísticos (n.º 3 do artigo 95.º e artigo 95.º-A). Mas se pretenderem exercer a própria distribuição por grosso por si próprios, não se lhes pode aplicar nem a obrigação nem, como parece evidente, a sanção. É esse o sentido que o intérprete razoável tem de tirar deste novo regime.
Ficará para próxima ocasião a análise das alterações que o diploma introduz quanto à exportação de medicamentos e ao controlo das atividades dos distribuidores por grosso, neste particular.
Miguel Gorjão-Henriques
Guilherme Oliveira e Costa