Publicada a primeira alteração ao Regime da Gestão de Ativos
SÉRVULO PUBLICATIONS 25 Nov 2024
Apresentação
Decorrido mais de um ano após a sua publicação e entrada em vigor, o Regime da Gestão de Ativos (“RGA”) sofreu a sua primeira alteração através da publicação do Decreto-Lei n.º 89/2024, de 18 de novembro (“Decreto-Lei”).
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei foi aditado ao artigo 31.º do RGA, inserido na disciplina sobre Fundos Próprios, um novo número que prevê, em síntese, poderem Sociedades Gestoras de Organismos de Investimento Coletivo, a título acessório e reunidos determinados requisitos organizativos, investir os montantes que excedam os requisitos de fundos próprios que lhe sejam aplicáveis.
Implicações
O diploma agora publicado admite a detenção e realização de investimentos em carteira própria pelas Sociedades Gestoras, sujeitas a três requisitos: (i) em primeiro lugar, os montantes investidos devem corresponder aos montantes detidos pelas Sociedades Gestoras que ultrapassem os requisitos de fundos próprios que lhes sejam aplicáveis, (ii)em segundo lugar, o investimento deve ser, em permanência, acessório à atividade principal de gestão coletiva de ativos e, (iii) por último, o investimento deve ser imune a situações de conflitos de interesses, que devem ser prevenidas (e previamente identificadas) pela Sociedade Gestora.
Antecipa-se que a solução agora vertida no RGA amplifique as posições que as Sociedades Gestoras têm ao seu dispor relativamente a ativos que se qualifiquem como fundos próprios – cujo investimento, recorde-se, se encontra atualmente limitado a posições em ativos líquidos ou prontamente convertíveis em numerário no curto prazo e excluindo posições especulativas – permitindo, além da tomada e partilha de risco com os investidores, maior diversificação de carteira e de estrutura de balanços.
Esta novidade permite a partilha de risco com os investidores (skin in the game), à semelhança do regime aplicável a operadores congéneres sujeitos a supervisão noutros ordenamentos jurídicos. Por estas razões, a opção assumida pelo Decreto-Lei constitui uma oportunidade e um novo fator de projeção da atividade de gestão coletiva de ativos sujeita a supervisão em Portugal, o que se saúda.
Natureza interpretativa da alteração
Para situar devidamente este diploma, devemos recordar que a aprovação do RGA determinou uma reforma profunda no estatuto jurídico das Sociedades Gestoras de Organismos de Investimento Coletivo (“OIC”), sendo uma das mais destacadas medidas a introdução de um regime prudencial distinto, mais simples e adequado à sua dimensão, aplicável a certas Sociedades Gestoras de Organismos de Investimento Alternativo (“OIA”) cujos ativos sob gestão não ultrapassem determinados limiares[1] – são as designadas as Sociedades Gestoras de Pequena Dimensão.
Quanto a estas Sociedades Gestoras, e não abdicando de reafirmar que o objeto principal das mesmas se reconduz à atividade de gestão de OIA, o RGA cuidou de prever expressamente que pudessem, a título acessório, dedicar-se ao investimento para carteira própria. Ficou clara, por isso, a opção do legislador em admitir um razoável grau de livre atuação patrimonial, não sujeito a autorização da CMVM[2], de certas Sociedades Gestoras, considerando-se admissível o investimento em carteira própria, quer a título individual, quer a título de coinvestimento (artigo 32.º, n.º 2 RGA)[3].
A mesma solução não foi adotada quanto às Sociedades Gestoras de Grande dimensão (as Sociedades Gestoras de OIA cujos ativos sob gestão ultrapassem certos limiares) e Sociedades Gestoras de Organismos de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários (“OICVM”). Quanto a estas não ficou expressa a opção do legislador em admitir que pudessem, acessoriamente e cumpridos determinados requisitos, investir certos fundos em investimentos por si detidos. Relativamente a este tema, segundo a posição da CMVM, não existindo previsão expressa que admitisse esta atividade, “a resposta à dúvida sobre se as sociedades gestoras de grande dimensão e de OICVM podem, a título profissional, investir para carteira própria, não pode deixar de ser negativa.”[4].
A referida posição não era, contudo, a única admissível ante o texto legal. Com efeito, no plano sistemático, as maiores exigências organizativas e regulatórias impostas às Sociedades Gestoras de OIA de Grande Dimensão e de OICVM bem podem significar que as atividades permitidas às Sociedades Gestoras de OIA de Pequena Dimensão sejam, ipso jure, de exercício permitido pelas demais.
Entende-se, por essa razão, que há um declarado intuito interpretativo do Decreto-Lei, resolvendo uma dúvida interpretativa da versão originária do RGA, no sentido sistematicamente coerente de que as Sociedades Gestoras[5] podem prosseguir, por sua conta, atividades de investimento acessórias à atividade principal de gestão coletiva de ativos.
Entrada em vigor e aplicação
A alteração introduzida ao RGA entra em vigor no dia 23 de novembro de 2024.
No entanto, a plena vigência desta alteração depende da aprovação de regulamentação pela CMVM que concretize o modo como as referidas atividades poderão ser prosseguidas. Aguarda-se, por isso, com expectativa a divulgação de consulta pública de regulamentação da CMVM sobre esta matéria.
Paulo Câmara | pc@servulo.com
José Eduardo Oliveira | jpo@servulo.com
[1] Cfr. artigo 7.º, n.º 1 do RGA.
[2] CMVM, Relatório de consulta pública do Regime da Gestão de Ativos, (2021), p. 19.
[3] Cfr. Paulo Câmara, anotação ao artigo 32.º, em Paulo Câmara (Coord.), Regime da Gestão de Ativos Anotado, (2024), p. 163.
[4] CMVM, Relatório de consulta pública do Regime da Gestão de Ativos, (2021), p. 19.
[5] Incluindo Sociedades de Capital de Risco que, ao abrigo do revogado Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, podiam investir e deter carteira própria.