O novo regime jurídico das sociedades desportivas
SÉRVULO PUBLICATIONS 18 Aug 2023
Na sequência dos vários processos de extinção, insolvência ou dissolução que já afetaram cerca de 20% das sociedades desportivas constituídas até à data e que conduziram, em alguns casos, à queda de clubes históricos, o Governo definiu como prioridade a revisão do regime jurídico aplicável às sociedades desportivas, com o intuito de «assegurar uma maior regulação ao setor, de forma a torná-lo mais atrativo para a captação de investimento»[1].
Neste contexto, foi publicada, no passado dia 4 de agosto, a Lei n.º 39/2023, que estabelece o novo regime jurídico das sociedades desportivas e revoga o regime anteriormente em vigor (Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro).
As alterações introduzidas pela nova lei são diversas, com implicações de natureza substantiva e sancionatória. Analisaremos, em seguida, as alterações mais relevantes impostas pela Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto.
I. Admissibilidade de uma nova forma societária
Ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro, era somente admissível a constituição de sociedades desportivas sob a forma de sociedade anónima (SAD) ou de sociedade unipessoal por quotas (SDUQ).
O novo regime jurídico das sociedades desportivas passa a permitir a constituição de sociedades desportivas sob a forma de sociedade por quotas (SDQ), cujo regime se encontra previsto no Código das Sociedades Comerciais.
II. Proibição de fusão de sociedades desportivas
A Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto, proíbe a fusão de sociedades desportivas com diferentes clubes desportivos fundadores, admitindo-a apenas se houver fusão entre os respetivos clubes desportivos, visando assim a proteção da verdade desportiva.
III. Paridade de sexo
Tal como sucedia ao abrigo do regime anterior, um clube desportivo não pode constituir ou ser titular de capital social de mais do que uma sociedade desportiva que tenha por objeto a mesma modalidade desportiva.
A Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto, introduz, porém, uma exceção a esta regra, permitindo a constituição ou titularidade de capital social de sociedades desportivas que se reportem à mesma modalidade desportiva, se se diferenciarem por sexo. Trata-se de uma medida que visa promover o investimento em equipas femininas.
A preocupação do legislador em assegurar a paridade de sexo nesta matéria evidencia-se também pela introdução de quotas de género, estabelecendo-se que as sociedades desportivas deverão assegurar a proporção mínima de 33,3% de pessoas de cada sexo para cada órgão de administração e de fiscalização. Embora estes limites não se apliquem aos mandatos em curso, aplicar-se-ão à renovação e substituição desses mandatos.
IV. Redução do limite mínimo da participação social do clube fundador
A nova lei reduz o limite mínimo do capital social da sociedade desportiva obrigatoriamente detido pelo clube fundador de 10% para 5% nos casos em que a sociedade desportiva tenha sido constituída por transformação de um clube desportivo ou pela personalização jurídica de uma equipa de um clube desportivo que participe ou pretenda participar em competições desportivas.
Tal como sucedia ao abrigo do regime anterior, a participação social do clube fundador confere sempre (i) o direito de veto das deliberações da assembleia geral que tenham por objeto a fusão, cisão ou dissolução da sociedade, a mudança da localização da sede e os símbolos do clube desportivo; e (ii) o poder de designar pelo menos um dos membros do órgão de administração e de fiscalização, com direito a participar em todas as reuniões e com direito de veto das deliberações referidas em (i).
O clube fundador passa ainda a ter o direito de eleger um associado para o órgão de administração da sociedade anónima desportiva, com direito a participar em todas as reuniões, mas sem direito de voto.
V. Salvaguarda do palmarés desportivo e dos troféus conquistados pela sociedade desportiva em caso de dissolução, insolvência ou extinção
Nos termos do regime anteriormente em vigor, em caso de dissolução, insolvência ou extinção da sociedade desportiva, as instalações desportivas eram atribuídas ao clube desportivo fundador, desde que não fossem indispensáveis para liquidar dívidas sociais.
A inexistência de uma norma que salvaguardasse a atribuição do palmarés desportivo e dos troféus conquistados pela sociedade desportiva ao clube desportivo fundador conduziu, por exemplo, a que a Taça de Portugal conquistada pelo clube Desportivo das Aves em 2017/2018 viesse a ser leiloada em hasta pública, no âmbito da insolvência da sociedade desportiva constituída por esse clube.
Pretendendo evitar situações semelhantes, o novo regime jurídico das sociedades desportivas prevê expressamente que o palmarés desportivo e os troféus conquistados pela sociedade desportiva devem ser reconhecidos e atribuídos ao clube desportivo fundador, desde que este mantenha essa qualidade à data da dissolução, insolvência ou extinção da sociedade desportiva.
VI. Alargamento do perímetro das incompatibilidades para o exercício de funções de administração ou gerência
Não obstante o Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro, conter já um regime de incompatibilidades para o exercício de funções de administração ou gerência de sociedades desportivas, esse regime veio a revelar-se insuficiente.
Por conseguinte, a Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto, vem introduzir um regime reforçado de incompatibilidades para o exercício de funções de administração ou gerência de sociedades desportivas, alargando-o às pessoas singulares ou coletivas:
a) Que detenham capital social, direta ou indiretamente, de outra sociedade desportiva participante em competições nacionais da mesma modalidade;
b) Que na mesma época desportiva, tenham ocupado cargos de administrador ou gerente em outra sociedade desportiva constituída no âmbito da mesma modalidade;
c) Que se dediquem à atividade, ocasional ou permanente, de intermediação de jogadores e treinadores;
d) Que, por força de relações pessoais ou profissionais, possam gerar uma situação, real, aparente ou potencial, suscetível de originar interesses incompatíveis daqueles que estão obrigados a defender;
e) Que sejam estreitamente relacionadas com as pessoas singulares ou coletivas referidas nas alíneas anteriores.
Pretende-se, assim, evitar os conflitos de interesses e assegurar a administração diligente das sociedades desportivas.
VII. Alargamento dos deveres de transparência e de publicidade
O novo regime jurídico das sociedades desportiva prevê novos deveres de transparência, designadamente a obrigatoriedade de identificação dos beneficiários efetivos das sociedades que detenham participações na sociedade desportiva. As sociedades desportivas passam, assim, a estar sujeitas às medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo previstas na Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto.
No que respeita aos deveres de publicidade, as sociedades desportivas têm agora de publicar na respetiva página de internet (i) o contrato de sociedade, em versão consolidada e atualizada; (ii) as contas dos últimos três anos; (iii) a composição dos órgãos de administração e fiscalização; (iv) os seus contactos oficiais; (v) as comunicações dos sócios relativas à subscrição ou aquisição de participações sociais.
Os clubes ou sociedades desportivas que intervenham em transferências de praticantes desportivos profissionais estão ainda obrigados a prestar informação relativa às mesmas (e.g., o valor total da transferência e a percentagem dos direitos que é alienada) à federação desportiva que tutela a modalidade em causa e à entidade fiscalizadora.
VIII. Imposição de requisitos de idoneidade a detentores de participação qualificada ou a titulares de órgãos de administração e fiscalização
A Lei n.º 39/2023 impõe que os detentores de participação qualificada[2] ou titulares de órgãos de administração e fiscalização sejam sujeitos a uma apreciação de idoneidade, efetuada com base em critérios de natureza objetiva.
Para efeitos da referida lei, é considera idónea a pessoa que, designadamente, cumpra cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Seja maior e capaz;
b) Não seja devedora de qualquer sociedade desportiva;
c) Não tenha sido condenada por sentença transitada em julgado por crimes em matéria de dopagem, corrupção desportiva, racismo, xenofobia, crimes praticados contra o património de sociedades desportivas ou clubes desportivos ou determinados crimes de natureza financeira, até cinco anos após o cumprimento da pena.
Os titulares de participação qualificada no capital social de uma sociedade desportiva e os membros de órgão de administração e fiscalização em sociedades desportivas passam a estar obrigados a submeter à entidade fiscalizadora uma declaração de compromisso de honra de que cumprem os critérios de idoneidade previstos na lei.
Os candidatos à aquisição de uma participação qualificada no capital social de uma sociedade desportiva ficam também obrigados a demonstrar capacidade económica para o investimento e a procedência dos meios financeiros a utilizar, devendo submeter para o efeito uma declaração de compromisso de honra.
IX. Instituição de entidade fiscalizadora e criação de um canal de denúncia
A Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto institui ainda uma entidade fiscalizadora das sociedades desportivas, atribuindo ao Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P. (“IPDJ”) a competência para o efeito, designadamente através de inquéritos, inspeções, sindicâncias e auditorias externas.
Ao IPDJ caberá, designadamente, a verificação da idoneidade e de eventuais conflitos de interesses dos investidores qualificados, administradores e gerentes.
O novo regime das sociedades desportivas impõe ainda a criação de um canal de denúncia de infrações pelo IPDJ e pelas sociedades desportivas.
X. Regime sancionatório
Uma das mais significativas alterações impostas pelo novo regime das sociedades desportivas consiste na introdução de um regime contraordenacional específico para sociedades desportivas, prevendo a aplicação de coimas entre € 500,00 e € 500.000,00 e de sanções desportivas em caso de violação dos deveres e obrigações previstos na Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto.
O novo regime jurídico das sociedades desportivas colmata assim uma importante lacuna do regime anterior, no qual não se previa qualquer regime sancionatório e, por isso, o incumprimento pelas sociedades desportivas dos deveres e obrigações a que estavam adstritas ficava muitas vezes inconsequente.
As alterações impostas pelo novo regime jurídico das sociedades desportivas visam em grande medida promover o equilíbrio entre o clube fundador e os investidores qualificados das sociedades desportivas, impondo-lhes uma conduta transparente e, desse modo, credibilizando estas últimas.
A Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto entra em vigor no dia 4 de setembro de 2023.
Miguel Santos Almeida | msa@servulo.com
Maria Novo Baptista | mnb@servulo.com
[1] Cfr. Comunicado do Conselho de Ministros de 12 de janeiro de 2023, disponível em https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=governo-aprova-alteracoes-ao-regime-juridico-das-sociedades-desportivas.
[2] Nos termos do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo DL n.º 486/99, de 13 de novembro, considera-se participação qualificada a participação direta ou indireta que represente percentagem superior a 5% do capital social.