O Reino Unido pode abandonar a União Europeia, mas a concorrência europeia não abandona o Reino Unido – o novo regime para os gigantes tecnológicos
SÉRVULO PUBLICATIONS 15 Dec 2020
Enquanto se aproxima o prazo final para a transição do Brexit, o Governo do Reino Unido prepara também um novo instrumento regulatório no âmbito do direito da concorrência: um regime específico para regular as condutas de plataformas digitais. Para este efeito será criada uma unidade especializada da Competition and Markets Authority (CMA) dedicada ao mercado digital, para fazer face ao aparente domínio do mercado destes tech gigants[1].
A aposta do Governo britânico acompanha a tendência europeia de regulação para pró-concorrencial do mercado digital, avançada pela Comissão Europeia em 2 de junho passado. A Comissão Europeia anunciou a publicação de uma avaliação de impacto e uma consulta pública aberta relativa a um “eventual novo instrumento de concorrência que permita resolver os problemas estruturais de concorrência, de forma rápida e eficaz”. A proposta surgia associada às reflexão da Comissão Europeia quanto à política da concorrência para os mercados digitais e à adequação da legislação europeia para os serviços digitais. Através do Digital Services Act, a Comissão pretende propor regras relativas às responsabilidades dos fornecedores de serviços digitais face aos riscos enfrentados pelos utilizadores a fim de melhor proteger os direitos destes. Para a Comissão, as novas regras constituirão modelo moderno de cooperação para supervisão das plataformas digitais. Além disso, a Comissão pretende propor regras sobre práticas comerciais desleais em grandes plataformas online que podem ser consideradas ‘gatekeepers’ e que, nas palavras da Comissão, “estabelecem as regras do jogo para os seus utilizadores e concorrentes”[2].
Por seu turno, o Reino Unido prepara-se para dotar essa futura Digital Markets Unit de competências de supervisão de um novo regime pró-concorrencial para plataformas digitais, incluindo as que são financiadas por receitas publicitárias, como a Google ou a Facebook. O novo regime assenta em três premissas genéricas essenciais: i) maior liberdade de escolha e controlo pelos consumidores sobre a utilização conferida aos seus dados; ii) mais acesso das PMEs à promoção online de produtos; iii) maior sustentabilidade da indústria de publicação de jornais e as plataformas de comunicação social online.
O Reino Unido considera, assim e acompanhando as tendências globais, que a concentração de poder e influência de mercado de um número restrito de grandes empresas tecnológicas está a restringir o crescimento do setor tecnológico, reduzindo a inovação e potencialmente impactando de forma negativa os consumidores e os empresários que dependem do mesmo para as suas atividades.
O novo regime irá definir expectativas claras para as plataformas digitais com um poder de mercado considerável (strategic market status) sobre o que constitui comportamento aceitável no âmbito das interações com concorrentes e utilizadores. As plataformas digitais, incluindo aquelas que sejam financiadas por anúncios publicitários online, terão que ser mais transparentes sobre os serviços que providenciam e sobre o modo como utilizam os dados dos seus utilizadores, e estarão proibidas de apor restrições aos consumidores que dificultem a utilização por estes de plataformas concorrentes. A nova Unidade da CMA será dotada de importantes poderes de supervisão e sancionatórios.
Atualmente, equaciona-se que as plataformas digitais “dominantes” possam impor termos sobre os editores de notícias que limitam a sua capacidade lucrativa e impactam a sua capacidade de desenvolvimento. Este regime irá regular os acordos comerciais estabelecidos entre os editores e as plataformas digitais (procurando garantir que os primeiros conseguem acordos justos), auxiliando a transformação digital das edições em jornal de notícias, criando, assim, condições para a sua sustentabilidade económica e um (esperado) incremento da qualidade jornalística online.
O Setor digital contribuiu cerca de 150 biliões de libras para a economia do Reino Unido em 2018, tendo a CMA concluído, no seu estudo de mercado que a falta de concorrência no mercado digital tem impedido o desenvolvimento de novos e valiosos serviços para os consumidores e resulta em elevados preços para os negócios que se servem destas plataformas, e, desse modo, elevados preços finais para os consumidores. Estima-se que o Setor digital contribua com mais de 6 triliões de euros para o Espaço Económico Europeu.
Guilherme Oliveira e Costa | goc@servulo.com
João Abreu Campos | jac@servulo.com
[1] Que surge no seguimento do Estudo de Mercado e subsequente publicação pela CMA da Estratégia de Mercados Digitais, publicada em julho de 2019, disponível aqui.
[2] A Comissão Europeia colocou em discussão dois cenários distintos, sendo que cada um destes pode ser dividido em dois, consoante o novo instrumento seja aplicável a todos ou apenas a alguns setores. Relativamente ao primeiro cenário, estaria em causa uma ferramenta assente no conceito de posição dominante, que permitiria à Comissão atuar antes de ser declarada a existência de qualquer abuso. Já no segundo cenário, a Comissão Europeia propõe que a ferramenta tenha por base a estrutura de mercado, não se exigindo que a empresa sujeita a este novo instrumento detenha uma posição dominante. Em ambos os cenários a Comissão Europeia não poderá impor coimas e estas decisões não poderão gerar direitos indemnizatórios, limitando-se a decidir sobre remédios comportamentais e estruturais a aplicar às empresas.