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O Processo Especial de Revitalização no contexto da pandemia COVID-19

SÉRVULO PUBLICATIONS 15 Apr 2020

A atual situação de emergência de saúde pública ocasionada pela pandemia da COVID-19, aliada à declaração de estado de emergência e à decorrente imposição de um conjunto de restrições de direitos e liberdades – em especial, de direitos de circulação e de liberdades económicas –, estão a ter um impacto devastador na atividade e, por conseguinte, na solvência das empresas. Neste contexto, os mecanismos de restruturação empresarial, como o Processo Especial de Revitalização (“PER”), ganham uma relevância acrescida, sendo o respetivo conhecimento uma mais-valia que nenhum gestor atento deve dispensar. 

O PER surgiu no nosso ordenamento jurídico em 2012, como resposta ao compromisso – assumido por Portugal no Memorando da Troika – de alteração da legislação insolvencial no sentido de agilizar a recuperação efetiva de empresas viáveis. Desde então, milhares de empresas em situação económica difícil[1], ou em situação de insolvência meramente iminente, mas ainda suscetíveis de recuperação, recorreram ao PER, estabelecendo negociações com os seus credores com vista à obtenção de um acordo conducente à sua revitalização. 

Para aceder ao PER – um processo de natureza urgente, com tramitação mais célere do que os demais processos em tribunal –, a empresa deve apresentar, além do requerimento inicial e de um rol de documentos relacionados com a sua atividade (e.g., relação de credores, lista de ativos, relatórios e contas):

a) Declaração subscrita há não mais de 30 dias por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas (sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida), atestando que a empresa não se encontra em situação de insolvência atual, à luz dos critérios previstos na lei;

b) Declaração subscrita pela empresa e por credores que, não estando especialmente relacionados com aquela, sejam titulares de, pelo menos, 10% de créditos não subordinados[2], manifestando vontade de encetarem negociações conducentes à revitalização, por meio da aprovação de plano de recuperação;

c) Proposta de plano de recuperação acompanhada, pelo menos, da descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia da empresa[3].

O plano de recuperação a propor aos credores deve conter medidas que visem restabelecer a viabilidade económico-financeira da empresa, das quais são exemplo:

  1. O perdão ou redução do valor dos créditos, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros;
  2. O condicionamento do reembolso de todos os créditos, ou de parte deles, às disponibilidades da empresa;
  3. A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
  4. A constituição de garantias;
  5. A dação em cumprimento e a cessão de bens aos credores;
  6. O aumento do capital social, em dinheiro ou em espécie, a subscrever por terceiros ou por credores, nomeadamente mediante a conversão de créditos em participações sociais;
  7. A redução do capital social para cobertura de prejuízos.

Após uma fase de reclamação de créditos, o plano apresentado é negociado com os credores, com a participação e sob a orientação de um administrador judicial provisório, sendo depois submetido à votação daqueles. Se o plano de recuperação for aprovado pelos credores, o juiz decide se o homologa ou não, ficando a homologação dependente da confirmação de que o PER decorreu como legalmente previsto e de que o plano respeita os princípios e as normas aplicáveis. Sendo homologado pelo tribunal, o plano de recuperação vincula a empresa e todos os seus credores (mesmo os que não hajam participado no PER), relativamente aos créditos constituídos até à data da nomeação do administrador judicial provisório.

As empresas que já se hajam submetido a um PER concluído com a homologação de plano de recuperação estão impedidas de recorrer novamente ao PER pelo prazo de dois anos, a não ser que demonstrem que executaram integralmente o plano ou que o requerimento de novo PER é motivado por fatores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente é alheia à empresa. Afigurando-se evidente que nenhum plano de recuperação poderia ter antecipado o colapso de atividade provocado pela COVID-19 e que as advenientes dificuldades económicas não foram imputáveis à empresa, a referida limitação temporal não deve aplicar-se, podendo a empresa reiniciar negociações com os seus credores no âmbito de um novo PER, sem ter de aguardar pelo decurso dos dois anos. 

A excecionalidade das circunstâncias em que vivemos e da crise que se avizinha justificariam, crê-se, uma intervenção do legislador no sentido da flexibilização do regime do PER. Por um lado, se à situação económica difícil e à situação de insolvência iminente, que permitem o acesso ao PER, fosse acrescentada a situação económica difícil iminente ou previsível a curto prazo, o PER assumiria um caráter mais preventivo[4], minimizando perdas de valor da empresa e aumentando as possibilidades de restruturação. Do mesmo modo, uma redução do peso relativo do credor com faculdade de, juntamente com a empresa devedora, declarar a vontade de encetar negociações (10% de créditos não subordinados[5], conforme se referiu) também tornaria mais fácil a instauração atempada de um PER. Por outro lado, já na pendência do PER, o alargamento da margem negocial do credor Estado – sobretudo, da Autoridade Tributária e da Segurança Social –, designadamente no sentido de possibilitar a aceitação de planos prestacionais mais favoráveis para empresas em recuperação, com prazos de pagamento mais longos, período de carência, perdão de juros ou dispensa de garantia, removeria um obstáculo significativo à aprovação de planos de recuperação. 

Quanto mais cedo uma empresa economicamente viável[6] tomar as medidas adequadas para superar as suas dificuldades financeiras, mais elevada será a probabilidade de evitar a insolvência e prosseguir a sua atividade, em benefício da própria, dos seus trabalhadores, dos seus credores e da economia em geral. Superar a COVID-19, preparar a retoma. 

Alexandra Valpaços | ava@servulo.com 



[1] Encontra-se em situação económica difícil a empresa que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.

[2] São subordinados, designadamente, os créditos detidos por sócios e por administradores da empresa devedora e por sociedades em relação de domínio ou de grupo com a mesma.

[3] Em alternativa, o PER pode igualmente iniciar-se através da apresentação de um acordo extrajudicial de recuperação, assinado pela empresa e por credores que representem, pelo menos, a maioria legalmente exigida para a aprovação do plano de recuperação.

[4] É essa a tendência presente na Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas), com prazo de transposição até 17 de julho de 2021.

[5] Atualmente, o juiz já pode, mediante pedido fundamentado da empresa ou desta e de credores sem relações especiais que detenham pelo menos 5% dos créditos relacionados, reduzir aquele limite de 10%, considerando o montante absoluto dos créditos relacionados e a composição do universo de credores.

[6] Paralelamente, as empresas não viáveis sem qualquer perspetiva de recuperação deverão ser liquidadas da forma mais rápida possível, no âmbito de um processo de insolvência.

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