O INFARMED e o fornecimento do mercado dos medicamentos: a circular informativa 12/2019
SÉRVULO PUBLICATIONS 10 Jan 2019
Publicou ontem o INFARMED, I.P. uma Circular Informativa (n.º 12/CD/100.20.200, datada de 8 de Janeiro de 2019), através da qual pretende explicitar o conteúdo da obrigação de fornecimento do mercado que os vários intervenientes do circuito do medicamento têm, nos termos do chamado Estatuto do Medicamento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto.
Esta Circular Informativa não dispõe, naturalmente, de força jurídica vinculativa, baseando-se também num instrumento não obrigatório e de carácter técnico, o divulgado pela DG da Saúde e Segurança dos Alimentos da Comissão Europeia (DG Sante) e aprovado pelo Comité Farmacêutico sobre a escassez de medicamentos, de 25 de maio de 2018[1], que visa fornecer indicações práticas sobre a aplicação dos artigos 23.º-A e 81.º da Diretiva 2001/83/CE (artigos 78.º e 100.º do Decreto-Lei n.º 176/2016, na sua redação atual).
As premissas do documento são claras, mas perante elas o Estado bem pode corar de vergonha, por ser inequívoco exemplo, com este documento, de que «em casa de ferreiro, espeto de pau», mormente quando reconhece que o acesso aos medicamentos «constitui uma das vertentes mais relevantes do direito fundamental à saúde». É bem verdade, mas são conhecidas as dificuldades e barreiras que, sobretudo por razões financeiras, o Estado levanta no acesso ao mercado, mormente ao mercado hospitalar, com sérios prejuízos para a saúde pública e os doentes. Segundo, que o acesso aos medicamentos não pode ser limitado no espaço ou pelos intervenientes da cadeia do medicamento. Terceiro, que o fornecimento deve ser contínuo.
Quanto às diversas categorias de intervenientes, a Circular Informativa não inova de forma significativa. Assim, para os titulares de autorização de introdução no mercado, veio o INFARMED I.P. dar nova roupagem ao artigo 29.º do Estatuto do Medicamento, elencando os deveres que resultam para estes a partir do momento em que notificam ao INFARMED, I.P. o início da comercialização de um medicamento de uso humano. Destaque-se, ainda assim, o acento tónico na garantia do fornecimento ao mercado nacional e na aparente licitude, aí declarada, de os titulares de autorizações de introdução no mercado poderem verificar se os clientes dos distribuidores por grosso são “entidades nacionais de dispensa ao público” (“farmácias, hospitais, locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica, etc.”), declarando uma proibição de recusa de venda que, a nosso ver, sofre das limitações resultantes de diversa legislação aplicável. Relevantes são também as disposições que impõem, em determinadas condições, a adoção de um “plano de prevenção de escassez”, sobre o qual o INFARMED, I.P. indicou ir “emitir orientações específicas” (aplicável em especial a medicamentos (i) nos quais parte do processo de fabrico está dependente de uma única instalação e (ii) para os quais não existam alternativas ou as que existam sejam limitadas e cuja interrupção no fornecimento poderá suscitar um risco potencial para a saúde pública).
Relativamente aos distribuidores por grosso, o que se destaca são, por um lado, a omissão de referência às boas práticas de distribuição (Deliberação n.º 047/CD/2015) e, por outro, uma limitação ao exercício do direito de comercialização destes com outros distribuidores grossistas, aqui qualificado como subsidiário, sem qualquer arrimo na legislação (só podem abastecer outros distribuidores por grosso após o abastecimento integral das farmácias e outras entidades habilitadas a dispensar medicamentos ao público no território geográfico no qual são responsáveis), medida que só pode ter em vista uma limitação do comércio paralelo. Em todo o caso, esta circular não constitui meio idóneo para dar execução ao n.º 2 do artigo 100.º do Estatuto do Medicamento, sobretudo tendo em vista que o documento do Comité Farmacêutico afirma tais limitações de modo subordinado ao estabelecimento de obrigações de serviço público, o que não sucede hoje entre nós[2]. Nem se substitui ou apresenta qualquer vantagem face à Deliberação n.º 021/CD/2011 ou ao Regulamento sobre notificação prévia de transações de medicamentos para o exterior do país, republicado com a Deliberação n.º 524/2017, alterada pela Deliberação n.º 481/2018.
Já as farmácias e outras entidades habilitadas a dispensar medicamentos ao público têm de respeitar o princípio da continuidade do serviço à comunidade, devendo dispensar os medicamentos que lhes sejam solicitados pelos consumidores finais. Respeitando-se, adite-se, o princípio da liberdade de escolha do doente.
Um aspeto que o INFARMED, I.P. não desenvolveu, mas é crucial, é o do limite das responsabilidades de cada interveniente no circuito do medicamento. O documento europeu remete, aqui, para uma análise casuística na aferição de tais limites pelos Estados membros. Mas importa referir que, aí, se declara que os titulares de autorização de introdução no mercado não serão responsabilizados em caso de comportamentos imputáveis a terceiros, tais como situações de escassez originadas (i) por exportações paralelas pelos distribuidores por grosso ou (ii) pelo aumento da procura decorrente da escassez no Estado membro de um medicamento alternativo produzido por outra empresa. Já os distribuidores por grosso não podem ser naturalmente responsabilizados em situações em que, por razões várias, não conseguem abastecer-se em quantidades suficientes junto dos seus fornecedores (v.g. titulares de autorização de introdução no mercado ou de autorização de fabrico, etc.).
Estas situações nem sempre se configuram como ilegítimas. Contudo, um aspeto a realçar é o renovado enfoque que o INFARMED, I.P. dá ao recente protocolo assinado com a Autoridade da Concorrência, ao declarar que, ao abrigo do mesmo, “estão a ser analisadas todas as situações que impossibilitam ou dificultam o acesso a um determinado medicamento”. É este enfoque numa compliance rigorosa, que tenha presente quer as exigências regulatórias do medicamento, quer as exigências postas pelo direito da concorrência, que se afigura, talvez, o aspeto prospetivo que mais deve ser tido em linha de conta pelas empresas (quaisquer que sejam) que intervêm no circuito do medicamento.
Miguel Gorjão-Henriques
Guilherme Oliveira e Costa
[1] Pode consultar-se em https://ec.europa.eu/health/sites/health/files/files/committee/ev_ 20180525_rd01_pt.pdf. Sobre estas matérias, Miguel Gorjão-Henriques, Atribuição e harmonização na União Europeia: o caso dos medicamentos, diss. Doutoramento, Almedina, Coimbra, 2018.
[2] Como aí se lê: «Dependendo dos deveres de serviço público no(s) Estado(s) membro(s) em causa, o distribuidor por grosso pode ser obrigado a fornecer todos (no caso dos grossistas de linhas completas) ou um conjunto de medicamentos predefinidos em intervalos periódicos (designadamente, diários) a um território geograficamente determinado. Os distribuidores por grosso podem abastecer outros distribuidores por grosso, desde que tenham a capacidade de cumprir os seus deveres de serviço público e de satisfazer a procura das farmácias e das pessoas habilitadas a dispensar medicamentos ao público do território geográfico sob a sua responsabilidade».