O Acórdão de Fixação de Jurisprudência N.º 9/2024: A Alteração da Natureza do Crime Público para Particular
SÉRVULO PUBLICATIONS 19 Jul 2024
No passado dia 9 de julho de 2024 foi publicado o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2024 que se debruçou sobre os pressupostos positivos de punição (em concreto, a acusação particular) nos casos em que o Ministério Público acusa o Arguido por um crime público (no caso, violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal ), mas na audiência de julgamento, após a prova produzida, soçobra a acusação por esse crime, provando-se factos integrantes de todos os elementos típicos (já sinalizados na acusação pública) de um crime particular (no caso, injúria, p. e. p. no artigo 181.º, n.º 1, do CP).
Esta hipótese equaciona-se desde logo porque o crime de violência doméstica pode integrar diversas condutas passíveis de serem enquadradas noutros tipos legais de crime (a saber, a ofensa à integridade física simples (artigo 143.º, do CP), a injúria (artigo 181.º, do CP), a ameaça (artigo 153.º, do CP), a coação (artigo 154.º, do CP), o sequestro (artigo 158.º, do CP), a devassa da vida privada (artigo 192.º. do CP) e as gravações e fotografias ilícitas (artigo 199.º, do CP), os quais podem estar numa relação de concurso com aquele [1]. Assim, a título exemplificativo, pode suceder que no despacho de acusação se tenha imputado ao Arguido a prática de um crime de violência doméstica em concurso aparente com um dos crimes atrás referidos, mas a final do julgamento, em virtude da redução da factualidade subjacente ao acusado/pronunciado pelo crime de violência doméstica, apenas se dê como provada a factualidade de um dos ilícitos dominados (v.g. do crime de injúria), reavendo este ilícito a sua autonomia.
Assim, em termos mais precisos, a questão a que o STJ procurou responder foi a seguinte: “[t]endo sido acusado pelo Ministério Público pela prática de crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152.º, n.º 1 do CP, com base em múltiplos factos atentatórios da dignidade pessoal, da integridade física e da honra do ofendido, verificando-se, a final do julgamento, não poder o arguido ser condenado por falta de prova dos elementos típicos de tal crime, pode o processo prosseguir, em convolação para crime de injúria, p. e p. no artigo 181.º, do CP, perante a prova de todos os seus elementos típicos e uma vez que o ofendido, em tempo próprio, apresentou queixa, se constitui assistente, acompanhou a acusação pública e persiste em vontade inequívoca de prosseguimento dos autos?”
Noutros termos, será que “mesmo sem acusação particular deduzida, (por, ao tempo, desnecessária), [se] mantém a legitimidade do MP e do ofendido/assistente para prosseguirem a acusação num crime de natureza particular?”
Os tribunais têm oferecido respostas diferentes a este problema, de modo que para compreender as discordâncias deve atender-se ao princípio da oficialidade quanto à promoção processual, acolhido no artigo 219.º, n.º 1 da CRP (e refletido nos artigos 48.º, do Código Processo Penal (CPP), 2.º e 4.º do Estatuto do Ministério Público (EMP) e 3.º da (Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), que postula que a iniciativa de investigar a prática de uma infração e a decisão de a submeter a julgamento cabe a uma entidade pública, concretamente ao MP [2]. Todavia, esta regra, que se traduz na atribuição de legitimidade ao MP para promover o processo penal oficiosamente (e em completo alheamento da vontade e atuação dos particulares) - e que vale in totum para os crimes públicos -, é objeto de desvios quando se está perante:
i) crimes semipúblicos, ou seja, crimes cujo procedimento criminal depende de queixa, pelo que o MP só pode abrir o inquérito se o ofendido ou outras pessoas (artigo 113.º, do CP), apresentarem queixa, cabendo ao dominus do inquérito a decisão de submeter/não submeter a causa a julgamento (artigos 49.º, n.ºs 1 e 2 e 276.º, n.º 1, do CPP);
ii) crimes particulares, ou seja, crimes cujo procedimento criminal depende de acusação particular, pelo que o MP só pode abrir o inquérito depois de o ofendido ou outras pessoas (artigos 113.º e 117.º do CP) apresentarem queixa e se constituírem Assistentes (artigo 50.º, n.º 1, 246.º, n.º 4, 68.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2). Acresce que, findo o inquérito, o MP notifica o Assistente para que este, querendo, deduza acusação particular, o que significa que é este que decide se a causa é ou não submetida a julgamento (artigo 285.º, n.º 1, do CPP), podendo o MP acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (artigos 50.º, n.º 1 e 285.º, n.º 4, do CPP).
Por conseguinte, da leitura das disposições legais mencionadas inferiu-se que a falha de uma destas condições de procedibilidade (a queixa) ou de prosseguibilidade (a acusação particular), que consubstanciam pressupostos positivos de punição, leva à falta de legitimidade do MP para o exercício da ação penal nos crimes particulares e, igualmente, à legitimidade do Assistente para a prossecução processual.
Todavia, atendendo à jurisprudência, designadamente, ao acórdão fundamento e ao acórdão recorrido, apresentam soluções diferentes quanto a este problema:
i) O primeiro acórdão do TRC, de 25.09.2017, processo n.º 505/15.9GAPTL.G1): “decidiu-se pelo preenchimento de todos os pressupostos substantivos e processuais para a condenação, dispensando-se o assistente de adicional dedução de acusação particular e acabando a condenar o arguido pela prática de crime particular de injúria”. Ou seja, no acórdão fundamento considerou-se que “perante a apresentação de queixa pelo ofendido, a sua subsequente constituição como assistente e o acompanhamento da acusação pública considerava-se verificada a condição de prosseguibilidade de acusação particular, mantendo-se quer a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal quer do assistente para a prossecução processual, acentuando-se que à assistente, “nada mais lhe era processualmente exigível”.
ii) No segundo (acórdão do TRL, de 13.10.2022, processo n.º 560/19.2PATVD.L1): “não condenou pela prática de crime de violência doméstica mas igualmente recusou-se a condenar pela prática de crime de injúria, pese embora reconhecendo o preenchimento factual do tipo, no objetivo e no subjetivo, recusa sustentada na inexistência de dedução de acusação particular pelo assistente por se estar perante crime de natureza particular”. Ou seja, no acórdão recorrido, tendo como ponto de partida a inobservância das normas processuais relativas à legitimidade e à acusação particular (artigos 188.º e 285.º, do CPP), concluiu-se que pela existência de um obstáculo ao prosseguimento do processo por falta de legitimidade do Assistente.
Tendo presente o quadro exposto, o Acórdão do STJ n.º 9/2024 fixou jurisprudência nos seguintes termos
“O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público”.
Assim, indicam-se de seguida, sinteticamente, alguns dos aspetos referidos no Acórdão e que considerámos fundamentais destacar por suportarem a posição jurisprudencial fixada:
i) A queixa e a acusação particular como “pressupostos positivos de punição”
Procede-se à destrinça entre ambos institutos, configurando a queixa como “condição de procedibilidade” e a acusação particular como “condição de prosseguibilidade ou pressuposto de prosseguimento”. Refere-se que a primeira se traduz na “manifestação de vontade de procedimento criminal corporizada em qualquer meio capaz de a levar ao conhecimento do Ministério Público em tempo, apresentada pelo respetivo titular do direito, em regra o ofendido, para que, com os factos relatados, o MP exerça a ação penal contra o autor do crime (artigos 111.º CP e 49.º CPP)”, consubstanciado uma “conditio sine qua non do início do processo”. Por sua vez, menciona-se que segunda consiste na “acusação deduzida pelo queixoso, já constituído assistente, findo o inquérito e, depois notificado para tanto, independentemente do MP e da posição que este venha a tomar na matéria (CPP, art. 285.º)”, assumindo um papel decisivo no prosseguimento dos autos e na definição do seu objeto (artigo 285.º, n.º 4, do CPP).
ii) A impossibilidade de deduzir acusação particular face à indiciação em causa
No Acórdão salienta-se que não houve qualquer “entorse ou desvio processual” até final da produção de prova em audiência de julgamento. De facto, quando o inquérito foi aberto e se procedeu ao conjunto de diligências que integram esta fase processual (artigo 262.º, do CPP), estava em causa a notícia de um crime de violência doméstica, pelo que o processo nasceu e prosseguiu com plena legitimidade do MP para o exercício da ação penal.
Acresce que, nos dois acórdãos em contradição, foi apresentada queixa, o ofendido constituiu-se Assistente e em ambos os casos este último acompanhou a acusação pública bem como, a final da audiência de julgamento, persistiu na vontade de prossecução processual.
Assim, volvendo ao caso, assinala-se que a acusação particular, não foi nem poderia ter sido deduzida pelo Assistente “porque, face à indiciação em causa houve acusação pública pela prática de crime de violência doméstica, com subsequente realização do julgamento”. Neste sentido, cita-se a posição da doutrina que, a propósito da queixa e da acusação particular, expressa que estas condições, “que se traduzem em momentos temporais, têm de verifica-se nos tempos chave a que se reportam. Isto é, a queixa e a participação, enquanto conditio sine qua non do processo, têm de existir no seu início, antes de se encetar diligências de investigação e probatórias, sem prejuízo de medidas cautelares e de polícia. Já a acusação particular tem de se verificar no final do inquérito. É nesses momentos-chave que cumpre aferir se o crime objeto do processo reclama o preenchimento dessas condições. Ultrapassado o marco temporal a que se reporta a condição de procedibilidade, os atos praticados posteriormente são válidos” [3] (realces nossos).
Em suma, a conclusão que se retira é a de que se o MP deduziu acusação por um crime público, a circunstância de na audiência de julgamento este crime ser convolado num crime particular, em virtude de apenas se terem provado os factos descritos na acusação pública respeitantes a este crime (in casu, um crime contra a honra), não obsta à condenação por este último crime, não se levantando novamente a questão procedibilidade ou da legitimidade do MP para a prossecução do processo.
iii) O acompanhamento da acusação pública como equivalente/correspondente da acusação particular
Como se enfatizou supra, decorre do quadro legal que acusação particular é uma condição de prosseguibilidade quando se está perante crimes particulares. Todavia, pode ler-se no Acórdão que “na impossibilidade de dedução de acusação particular (e de prévia impossibilidade legal de notificação pelo MP para tanto), no caso, não pode deixar de se equivaler o expresso acompanhamento da acusação pública a uma dedução de acusação particular, no que toca à função material desta cabe, a saber, a expressa e inequívoca vontade de que o arguido seja sujeito a julgamento e a condenação pela prática dos factos imputados” (realces nossos). Ora, esta equivalência do acompanhamento da acusação pública à dedução da acusação particular resulta, desde logo, da vontade que ofendido manifestou no prosseguimento penal pela totalidade dos factos imputados na referida acusação (e que posteriormente foram reduzidos), e é fundamentada pelo Tribunal na “densidade material” do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 6.º, n.º 1 da (Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
iv) Os crimes particulares e a disponibilidade do processo conferida ao ofendido
Um dos aspetos característicos dos crimes particulares e salientado no Acórdão é a total disponibilidade do processo conferida ao ofendido, a qual assenta em diversos fundamentos (v.g. a circunstância de se estar perante ilícitos de menor densidade jurídico-penal, o facto de se pretender evitar a intromissão na esfera das relações pessoais, a pretensão de se deixar ao domínio do ofendido a vontade da reserva da sua vida mais privada). Por este motivo, entende-se que “[i]n casu a disponibilidade que o legislador atribuiu ao assistente materializou-a este no acompanhamento que subscreveu da acusação pública. Outra ação ou empenhamento processual lhe não era exigidos. Mais, a dedução da formalmente denominada “acusação particular” estava-lhe proibida. (…) Com o que condição de prosseguibilidade, forçoso é concluir, por aí não falece. Sob pena de o formal nomen juris determinar a dinâmica e a teleologia processual, alheando-se o intérprete e aplicador a finalidade do processo penal e da intentio legis de realização da justiça material, do princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), do princípio equitativo, do princípio da confiança e do princípio da lealdade (artigo 2.º da CRP), do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva e da obtenção de decisão em prazo razoável, (artigo 20.º da CRP), da consecução célere da paz social e do equilibrado sopesamento dos interesses de todos os sujeitos processuais, (…)”.
v) A posição processual do Assistente e o princípio da lealdade processual
Perante a convolação do crime de violência doméstica para o crime particular de injúria, o Acórdão sublinha que tal “não pode, porém, significar que o ofendido fica desarmado da sua vontade de prossecução penal e que ao Ministério Público seja cerceada a legitimidade para o exercício da ação penal. Sob pena de se sancionar o assistente por uma falta (de acusação particular) que nunca poderia ter cometido”.
Com efeito, tal como já referiu, no caso o ofendido apresentou queixa, constitui-se Assistente, acompanhou a acusação pública, concluindo-se que não só cumpriu tudo quanto processualmente lhe era exigível, com também manifestou de forma inequívoca a vontade de prossecução penal do Arguido e daqueles factos.
Por este motivo, no Acórdão expressa-se – e bem – que “[e]star a exigir agora e a final uma condição de prosseguibilidade que antes era inexigível seria estar a driblar a pretensão do ofendido e a, deslealmente, desarmá-lo”.
vi) A consideração das finalidades do processo penal
Tendo como pressuposto as finalidades essenciais do processo penal - a saber, a realização da justiça a descoberta da verdade material, a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas (maxime, do Arguido) e o restabelecimento da paz jurídica (comunitária e do Arguido) posta em causa com a prática do crime [4] -, o Acórdão conclui que “[a] solução de que a degradação/convolação do crime de violência doméstica em crime de injúria agora operada não implica a ilegitimidade do Ministério Público e/ou do Assistente para a promoção do processo e não exige, supervenientemente, a apresentação de queixa, nem a dedução de acusação particular, pelo ofendido/assistente, é a única compaginável” com aquelas, designadamente, com a “realização da justiça, tutela de bens jurídicos, estabilização das normas, paz jurídica dos cidadãos”.
vii) O apelo à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º/1 da CRP)
Por fim, o Acórdão fundamentou a sua posição no princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, considerando que uma solução diferente da fixada, i.e., que obrigasse o Assistente a recomeçar todo o processo porque não exerceu tempestivamente a acusação particular, redundaria numa prevalência formal sobre a justiça material, “afastando regimes processuais que se revelem funcionalmente inadequados aos fins do processo, isto é, que se traduzam numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável ou que se mostrem desconformes com o princípio da proporcionalidade”. Mais, o recomeço de todo o processo traduzir-se-ia numa limitação desproporcionada do exercício do seu direito constitucional de intervenção no processo, atendendo a que “o direito de defesa do arguido persiste incólume” e “o julgamento findou com factos dados como provados e juízo de culpabilidade assente”. De modo que, o Tribunal considerou que essa “sanção” seria desproporcionada, violaria diversos princípios, tais como o pro actione, a celeridade processual (artigo 32.º, n.º 2 da CRP e 6.º da CEDH), e a economia processual (em economia de atos e economia de formalidades), a certeza e a segurança e estabilidade das situações jurídicas, a proteção da confiança e o due processo of law. Por fim, relembra-se que tal regressão levaria à vitimização secundária do ofendido, pelo que não se compaginaria com os melhores ensinamentos da Vitimologia.
[1] Dias, Maria do Carmo Silva, “Violência Doméstica” na Convenção de Istambul e no Código Penal Português, in Violência Doméstica e de Género e Mutilação Genital Feminina - 2019, 2.ª Ed., disponível em: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=tbJce1EFtH0%3d&portalid=30 , p. 116.
[2] Antunes, Maria João, Direito Processual Penal, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 64.
[3] Santos, André Teixeira dos, “Queixa, participação e acusação particular versus crime público convolado em crime particular em sentido amplo por força de redução dos factos objeto do processo”, in RMP, n.º 173, (janeiro-março) 2023 pp. 87 a 138.
[4] Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal: Lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, coligidas por Maria João Antunes, Coimbra: Secção de textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988 a 1989, pp. 21 e 25.