Google Android: a maior coima de sempre é confirmada pelo Tribunal Geral
SÉRVULO PUBLICATIONS 04 Oct 2022
O ambiente concorrencial europeu tem assistido, nos últimos anos, a um boom de decisões da Comissão Europeia (“Comissão”) relacionadas com as grandes multinacionais da tecnologia, conhecidas como BigTech. Da saga que trouxe decisões e acórdãos estruturantes como Microsoft[1], Intel[2] ou Google Shopping[3], chega agora o tão esperado acórdão do caso que ficou conhecido como Google Android[4].
A 18 de julho de 2018, a Comissão publicou a decisão condenatória onde impunha à Google LLC (“Google”) e à empresa-mãe Alphabet Inc. uma coima de €4,34 mil milhões por alegadas práticas anticoncorrenciais. A Comissão acusou a Google de abusar da sua posição dominante ao impor, aos fabricantes de dispositivos móveis e operadores de rede móvel, cláusulas contratuais que permitiam fortalecer a posição dominante do motor de busca da Google.
A Google, inconformada com a decisão da Comissão, recorreu da mesma para o Tribunal Geral, da União Europeia (“Tribunal Geral”). A 14 de setembro de 2022 foi proferido o acórdão, onde o Tribunal Geral confirma, em grande medida, a decisão da Comissão.
Enquadramento
Antes de se explorar o acórdão do Tribunal Geral, é necessário atender ao enquadramento do conceito de abuso de posição dominante e ao regime normativo relevante. Ora, consta do Artigo 102 to Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) que “é […] proibido […] o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste”.
Para se estabelecer que uma empresa está de facto numa posição dominante tem de se ter em consideração um conjunto diversificado de critérios, para além do poder de mercado, a qualidade, o serviço e a inovação do produto. De forma simplificada, se face à diminuição de qualquer um destes elementos o preço do produto não sofrer alterações, a empresa poderá estar numa posição dominante.
Resulta então que o TFUE proíbe as empresas de explorarem abusivamente a sua posição dominante de forma a evitar que estas eliminem a concorrência no mercado e, consequentemente, o leque de opções disponíveis para os consumidores. Embora tradicionalmente focados nos abusos de exclusão, também a prática de preços excessivos pode ser abusiva.
Decisão da Comissão
A Comissão acusa a Google de abuso de posição dominante ao impor as seguintes restrições contratuais aos fabricantes de dispositivos móveis e operadores de redes móveis:
- Restrições em acordos de distribuição, impondo aos fabricantes de telemóveis que pré-instalem as apps do Google Chrome e Google Search de forma a obterem uma licença da Google para usarem a Google Play Store;
- Restrições em “acordos anti fragmentação” que requerem que os produtores de telemóveis não usem sistemas operativos concorrentes à Android (conhecidos como Android “forks”);
- Restrições em acordos de partilha de receitas, mediante os quais determinados pagamentos aos fabricantes de telemóveis e operadores de redes móveis dependiam da não instalação de um serviço de busca concorrente
Análise do Tribunal
O Tribunal Geral procedeu a um exame detalhado da decisão da Comissão e dos argumentos apresentados pela Google; contudo, focamos aqui apenas a i) definição dos mercados relevantes e o ii) caráter abusivo das restrições.
O primeiro passo adotado pelo Tribunal foi o de (i) examinar os mercados relevantes definidos pela Comissão. É importante notar que a existência de posição dominante em determinado mercado depende dos limites desse mercado. Ou seja, o facto de a Google estar presente em diversos mercados não implica que detenha uma posição dominante em todos e cada um. Cabe ao Tribunal Geral analisar se a Comissão delimitou corretamente as fronteiras dos mercados relevantes e se a Google detém, efetivamente, uma posição dominante nos ditos mercados.
A Comissão identificou quatro tipos de mercados relevantes, três dos quais onde a Google detinha uma posição dominante:
- Mercado mundial – excluindo a China – para o licenciamento de sistemas operativos de dispositivos móveis inteligentes;
- Mercado mundial – excluindo a China – de app-stores compatíveis com o sistema operativo Android;
- Mercados nacionais – dentro da Espaço Económico Europeu – para a prestação de serviços de pesquisa geral.
Em relação ao mercado mundial para o licenciamento de sistemas operativos de dispositivos móveis inteligentes, a Google alega que a Comissão errou na sua apreciação da posição da Google neste mercado ao não ter dado a devida importância à concorrência que resulta dos sistemas operativos não licenciáveis, nomeadamente o iOS da Apple.
O Tribunal Geral teve assim oportunidade de esclarecer a relação entre sistemas operativos não-licenciáveis (por exemplo, Apple iOS) e sistemas operativos licenciáveis (Android). Este exame constitui um dos aspetos mais relevantes do acórdão, uma vez que se debruça sobre a relação entre a Apple e a Google. O Tribunal Geral concluiu que os sistemas operativos licenciáveis e não licenciáveis não pertencem ao mesmo mercado relevante e, consequentemente, empresas que desenvolvam sistemas operativos não licenciáveis (como a Apple) não diluem a posição dominante da Google, não existindo concorrência direta. Esta conclusão resulta do facto de, por exemplo, terceiros fabricantes de dispositivos móveis, não conseguirem obter uma licença para instalar a Apple iOS (que apenas é utilizado no sistema vertical integrado da Apple).
Apesar de reconhecer a existência de concorrência indireta entre os sistemas operativos da Google e da Apple, o Tribunal Geral determinou que a pressão concorrencial exercida pela Apple não era tal que afetasse a posição dominante da Google.
De seguida, o Tribunal Geral analisa o (ii) caráter abusivo das restrições, tendo recusado a maioria dos argumentos da Google. No entanto, em relação aos pagamentos condicionados pela não instalação de sistemas operativos concorrentes, o Tribunal Geral discordou da análise da Comissão e anulou essa parte da decisão o que se refletiu na redução da coima para €4.125 bilhões.
Próximos passos
A Google dispõe agora de 2 meses (e 10 dias) para recorrer do acórdão do Tribunal Geral para o Tribunal de Justiça (“TJ”). No entanto, o TJ só pode debruçar-se sobre matérias de direito, ou seja, a Google tem de argumentar que o Tribunal Geral incorreu em erros ou imprecisões legais aquando da análise da decisão da Comissão.
No rescaldo das recentes derrotas sofridas pela Comissão (por exemplo nos casos Intel[5] e Qualcomm[6]), a validação da decisão da Comissão foi, de algum modo, recebida como uma vitória histórica. Não só veio o Tribunal Geral confirmar substancialmente a decisão da Comissão, mas também aquiescer à aplicação da mais elevada coima alguma vez imposta por uma autoridade da concorrência europeia.
Apesar do seu presente sucesso, a estratégia da Comissão relativamente às BigTech tem sido alvo de várias críticas. Questões relativas ao impacto nos consumidores,[7] a eficácia das coimas[8] ou a lógica decisória[9] da Comissão têm marcado a discussão em redor dos casos das plataformas digitais.
[1] Acórdão do Tribunal Geral de 17 setembro de 2007, T-201/04, Microsoft Corp. c. Comissão Europeia, disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=62940&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=339870
[2] Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 setembro de 2017, C-413/14 P, Intel Corp. c. Comissão Europeia, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62014CJ0413&from=pt
[3] Acórdão do Tribunal Geral de 10 de novembro de 2021, T-612/17, Google LLC c. Comissão Europeia, disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=250881&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=341243
[4] Acórdão do Tribunal Geral de 14 de setembro de 2022, Google LLC c. Comissão Europeia, disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=265421&pageIndex=0&doclang=EN&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=342374
[5] Acórdão do Tribunal de Justiça, C-414/14 P, Intel Corporation Inc. c. Comissão Europeia, cit.
[6] Acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de janeiro de 2021, C-414/19 P, Qualcomm Inc. Comissão Europeia, disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=DCF924EBA9F3FE12B74560383E27A4C0?text=&docid=237087&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=330273
[7] Pinar Akman, “A PRELIMINARY ASSESSMENT OF THE EUROPEAN COMMISSION’S GOOGLE ANDROID DECISION”, disponível em https://ssrn.com/abstract=3310223
[8] Damien Geradin, “Taming the big tech platforms: DG COMP’s remedy problems (as illustrated by the Google saga), disponível em https://theplatformlaw.blog/2020/11/23/taming-the-big-tech-platforms-dg-comps-remedy-problem-as-illustrated-by-the-google-saga/
[9] Aurélien Portuese, “The Rise of Precautionary Antitrust: An Illustration with the EU Google Android Decision”, disponível em https://www.competitionpolicyinternational.com/the-rise-of-precautionary-antitrust-an-illustration-with-the-eu-google-android-decision/