Drug-Free Sport: A Nova Lei Antidopagem no Desporto - Parte II: Alterações em Matéria Sancionatória
SÉRVULO PUBLICATIONS 17 Dec 2021
A dopagem e o desporto são dois fenómenos intimamente ligados. A nível mundial, as organizações desportivas há muito que se empenham no combate à dopagem, procurando proteger a ética e integridade desportivas, bem como a saúde pública e a saúde individual dos praticantes desportivos.
Nesse contexto, entrou em vigor, no dia 1 de janeiro de 2021, o novo Código Mundial Antidopagem, cujas regras são agora adotadas na ordem jurídica portuguesa por meio da Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, que aprova a nova Lei Antidopagem no Desporto e revoga a lei anteriormente em vigor (Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto).
Na primeira parte deste update, abordámos as diversas alterações a nível substantivo e procedimental impostas pela Lei n.º 81/2021, procedendo-se agora à análise das alterações relevantes no domínio sancionatório.
I. Alterações em matéria de ilícitos criminais: o crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos
A nova Lei Antidopagem no Desporto opera alterações relevantes à previsão e punição do crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, passando agora o artigo 57.º a tipificar que:
“1 – Quem, sem que para tal se encontre autorizado, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar ou fizer transitar ou ilicitamente detiver substâncias e métodos constantes da lista de substâncias e métodos proibidos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 — A pena prevista no número anterior é agravada, nos seus limites mínimo e máximo, em um terço, se o agente agir com intenção de violar as normas antidopagem”.
Deixa, pois, de se exigir como elementos do tipo de crime a “violação de normas antidopagem” ou a “intenção de violação de normas antidopagem”, passando apenas a ser valorada a “intenção de violar as normas antidopagem”, mascomo elemento agravante da pena, que, nesse caso, será agravada em um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Cabe registar, no entanto, que se mantêm por solucionar os problemas de concurso de infrações que se verificavam já na vigência da lei anterior, não tendo sido aproveitada a oportunidade para a clarificação, designadamente, da relação que intercede entre este tipo legal de crime e o crime geral de tráfico de estupefacientes, sendo sabido que uma substância pode ser simultaneamente uma substância estupefaciente nos termos da lei geral e uma substância proibida para efeito de Lei Antidopagem.
Por outro lado, deixa de estar associada à prática deste crime – e à prática do crime de administração de substâncias e métodos proibidos – a sanção acessória disciplinar de suspensão de 4 até 25 anos, em caso de primeira infração (cfr. artigo 79.º, n.º 6).
II. Alterações procedimentais em matéria de ilícitos disciplinares
São várias as alterações impostas pela Lei n.º 81/2021 em matéria de procedimento disciplinar, destacando-se as seguintes:
a) Previsão de um dever de comunicação por parte da ADoP às organizações nacionais antidopagem, a federações desportivas internacionais e à AMA sempre que determinar a existência de violação das regras antidopagem contra um praticante desportivo ou outra pessoa (cfr. artigo 71.º, n.º 2);
b) A subcomissão constituída para deliberar a aplicação de sanções disciplinares passa a ter de notificar a deliberação não só à ADoP, ao praticante desportivo ou a outra pessoa, ao seu mandatário e à federação desportiva nacional respetiva, mas também à AMA e à federação internacional, devendo estas entidades guardar sigilo sobre a decisão até ao momento da sua publicitação (cfr. artigo 75.º, n.º 4);
c) Possibilidade de a audiência prévia do praticante desportivo ou da outra pessoa ser pública, a requerimento do praticante desportivo, de outra pessoa ou da ADoP com o consentimento escrito do praticante desportivo (cfr. artigo 75.º, n.º 5);
d) Possibilidade de o Comité Olímpico Internacional e o Comité Paralímpico Internacional impugnarem e intervirem no processo em que uma decisão final relativamente à aplicação de sanção disciplinar seja adotada, sempre que a decisão tenha qualquer efeito relativamente aos Jogos Olímpicos ou aos Jogos Paralímpicos, incluindo as decisões que afetem a elegibilidade do praticante desportivo para participar nos mesmos, bem como a possibilidade de estas entidades interporem recurso dessa decisão para o CAS (cfr. artigo 76.º, n.º 2 e 5);
e) A ausência de decisão pelo Colégio Disciplinar Antidopagem sobre a violação de uma norma antidopagem, dentro de um prazo razoável fixado pela AMA, passa a equivaler a uma decisão expressa no sentido de aquela entidade ter determinado que não existiu qualquer infração, podendo a AMA recorrer para o CAS (cfr. 76.º, n.º 14).
III. O regime sancionatório específico previsto para o consumo, ingestão e posse de substâncias de uso recreativo
Conforme referido na Parte I do presente artigo, a Lei n.º 81/2021 criou a categoria de substâncias de uso recreativo, consideradas como substâncias proibidas de uso recreativo definidas na lista de substâncias e métodos proibidos, cujo consumo ocorre num ambiente social, fora do contexto desportivo (cfr. artigo 2.º, alínea tt)). O regime sancionatório associado ao consumo, ingestão e posse destas substâncias é mais leve do que aquele previsto para as substâncias de uso não recreativo.
Desde logo, na hipótese de o consumo de substâncias de uso recreativo ocorrer em ambiente social, fora do contexto desportivo, e demonstrando o praticante desportivo que o consumo se verificou fora da competição e não se relaciona com o aumento do rendimento desportivo, estando em causa uma primeira infração, será punido com uma sanção de suspensão de (i) três meses; ou (ii) um mês, se frequentar e completar o processo de reabilitação prescrito pela ADoP (cfr. artigo 77.º, n.º 3).
Acresce que a nova lei antidopagem estabelece uma presunção de negligência no caso de o praticante desportivo demonstrar que o consumo, ingestão ou posse de substância de uso recreativo em competição não se relacionou com o aumento do rendimento desportivo (cfr. artigo 77.º, n.º 4).
IV. O regime sancionatório específico dos praticantes desportivos protegidos e dos praticantes desportivos recreativos
Conforme igualmente se avançou na Parte I do presente artigo, a nova Lei Antidopagem no Desporto cria as figuras de praticante desportivo protegido e de praticante desportivo recreativo.
Os praticantes desportivos que se insiram nestas categorias beneficiam de um regime disciplinar mais leve, sendo-lhes concedida a possibilidade de, no caso de a violação da norma antidopagem não estar relacionada com substâncias de uso recreativo, demonstrarem que a suaculpa ou negligência não é significativa, caso em que a sanção aplicável será, no mínimo, uma advertência, sem período de suspensão, e, no máximo, uma suspensão por um período de dois anos (por oposição à suspensão por um período máximo de quatro anos prevista para os participantes desportivos que não gozem deste regime) – cfr. artigos 77.º, n.º 1, e 83.º, n.º 4.
Por outro lado, no caso de o praticante desportivo protegido ou recreativo violar as normas antidopagem previstas nas alíneas d) e e) do n.º 2 do artigo 5.º (fuga, recusa, resistência ou falta sem justificação válida, por um praticante desportivo, a submeter -se a um controlo de dopagem, em competição ou fora de competição, após notificação por pessoa legalmente competente para o efeito, e à manipulação ou tentativa de manipulação de qualquer parte do controlo de dopagem por um praticante desportivo ou por outra pessoa), ser-lhe-á aplicada não uma sanção de suspensão, mas apenas uma sanção de advertência, em caso de primeira infração (79.º, n.º 1).
V. Outras alterações em matéria de sanções disciplinares
A Lei n.º 81/2021 introduz também várias alterações em matéria de sanções disciplinares, destacando-se as seguintes:
a) Previsão de uma sanção disciplinar de suspensão entre 2 e 25 anos, no caso de o praticante desportivo violar as normas antidopagem previstas nas alíneas i), k), l), m) e n) do n.º 2 do artigo 5.º (cfr. artigo 79.º, n.º 4);
b) Possibilidade de celebração de Acordo de Resolução do Processo, a solicitar pelo praticante desportivo ou outra pessoa à ADoP, aceitando este a redução do período de suspensão com base numa avaliação realizada pela ADoP e pela AMA (cfr. artigo 85.º);
c) Previsão de circunstâncias agravantes para aumento do período de suspensão pelo período máximo de dois anos, que incluem, designadamente, (i) a utilização ou posse de múltiplas substâncias proibidas ou métodos proibidos em várias ocasiões; (ii) a prática de várias outras violações das regras antidopagem; (iii) a probabilidade de que um indivíduo normal pudesse beneficiar de uma melhoria do rendimento desportivo para além do período de suspensão aplicável; (iv) a participação em ações enganosas ou obstrutivas para evitar a deteção de uma violação das regras antidopagem; (v) o envolvimento em atos de manipulação durante o período de tempo entre a notificação do resultado analítico adverso, o passaporte biológico ou uma falha no sistema de localização e a decisão final (cfr. artigo 86.º).
VI. Estatuto durante o período de suspensão
No que ao estatuto durante o período de suspensão respeita, a Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, consagra duas alterações relevantes.
Em primeiro lugar, estabelece-se que no caso de uma sanção de suspensão por período superior a quatro anos, o praticante desportivo pode, após cumprir os primeiros quatro anos de suspensão, participar em eventos desportivos de âmbito local que não se encontrem sob a alçada de um outorgante do Código Mundial Antidopagem ou de um seu filiado, desde que tal evento desportivo não possibilite a qualificação, direta ou indireta, ou a acumulação de pontos para um campeonato nacional ou para um evento ou competição internacionais e não envolva o contacto, seja em que condição for, com praticantes desportivos protegidos (cfr. artigo 88.º, n.º 3).
Em segundo lugar, esclarece a nova lei que durante o período de suspensão preventiva ou de cumprimento de uma sanção de suspensão, o praticante desportivo pode ser submetido a controlos de dopagem (cfr. artigo 88.º, n.º 7).
VII. Confidencialidade
As garantias dos praticantes desportivos saem reforçadas em matéria de proteção da confidencialidade, fixando-se agora expressamente os casos em que a ADoP pode divulgar publicamente a identidade do praticante desportivo ou outra pessoa, a substância proibida ou o método proibido, a natureza da violação antidopagem em causa e a aplicação de uma suspensão preventiva.
Salienta-se que ambos os casos previstos legalmente pressupõem o consentimento do visado, ainda que prestado de forma concludente. Nos termos do artigo 90.º, n.º 4, a ADoP apenas poderá divulgar publicamente os dados referidos (i) com o consentimento do praticante desportivo; ou (ii) se praticante desportivo inquirido violar o dever de confidencialidade e se pronunciar publicamente sobre o processo.
Ainda em matéria de confidencialidade, os praticantes desportivos protegidos ou recreativos, bem como os menores, gozam de uma proteção acrescida, não sendo obrigatória a publicitação da informação relevantenos casos em que sejam parte (cfr. artigo 91.º, n.º 12).
VIII. Reconhecimento mútuo
Por fim, a nova Lei Antidopagem densifica o conceito de reconhecimento mútuo das decisões proferidas pelas entidades nacionais antidopagem e pelo Tribunal Arbitral do Desporto de Lausanne, clarificando que o efeito de tais decisões é automaticamente vinculativo para a ADoP e para as federações desportivas, bem como para qualquer outorgante do Código Mundial Antidopagem, em qualquer desporto.
As alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, são diversas e de relevante impacto, tendo entrado em vigor no dia 15 de dezembro de 2021.
Miguel Santos Almeida | msa@servulo.com
Maria Novo Baptista | mnb@servulo.com