Drug-Free Sport: A Nova Lei Antidopagem no Desporto - Parte I: Alterações em Matéria Substantiva e Procedimental
SÉRVULO PUBLICATIONS 17 Dec 2021
A utilização de substâncias ou métodos com o propósito de aumentar o rendimento físico dos atletas é um fenómeno tão antigo como o próprio desporto, remontando à Grécia Antiga e ao Império Romano. As organizações desportivas sempre estiveram empenhadas no combate a este fenómeno, antítese da noção de desporto, que não apenas constitui um ataque à ética, integridade e igualdade desportivas, como enforma um verdadeiro problema de saúde pública, ante os efeitos nefastos que decorrem do uso de substâncias dopantes para o seu consumidor[1].
Deste modo, no contexto do combate à dopagem, foi publicada, no passado dia 30 de novembro de 2021, a Lei n.º 81/2021, que aprova a nova Lei Antidopagem no Desporto, adotando na ordem jurídica interna as regras do Código Mundial Antidopagem que entraram em vigor em 1 de janeiro de 2021 e revogando a lei anteriormente em vigor (Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto).
A aprovação de uma nova lei antidopagem, que garantisse a conformidade das regras internas com o novo Código Mundial Antidopagem, afigurava-se premente, na medida em que as consequências da não conformidade seriam gravosas, podendo culminar mesmo na impossibilidade de Portugal organizar campeonatos regionais, europeus ou mundiais, ou na proibição de a bandeira portuguesa ser hasteada nessas competições[2].
As alterações introduzidas pela nova lei são diversas, com implicações tanto a nível substantivo e procedimental, como a nível sancionatório. Na Parte I do presente artigo, irão abordar-se as alterações mais relevantes ao nível do regime substantivo e procedimental.
I. A criação das categorias de praticante desportivo protegido, praticante desportivo recreativo e substâncias de uso recreativo
A nova Lei Antidopagem no Desporto atualiza as definições constantes da Lei n.º 38/2012, destacando-se a criação das categorias de praticante desportivo protegido, de praticante desportivo recreativo e de substâncias de uso recreativo.
Nos termos da alínea kk) do artigo 2.ºda Lei, entende-se por praticante desportivo protegido aquele que, no momento da violação da norma antidopagem, (i) não tenha atingido a idade de 16 anos; (ii) não tenha atingido a idade de 18 anos e não esteja inserido no grupo-alvo de praticantes desportivos e nunca tenha competido num evento internacional; ou (iii) seja menor ou maior acompanhado.
Por outro lado, considera-se como praticante desportivo recreativo qualquer pessoa não inscrita numa federação desportiva que participe em competições ou eventos desportivos organizados ou promovidos por uma federação nacional ou internacional e que nos cinco anos anteriores à violação de uma norma antidopagem (i) não tenha sido praticante desportivo de nível nacional ou internacional, nem tenha representado uma seleção nacional num evento internacional numa categoria aberta, e (ii) não tenha estado inserido num grupo-alvo de praticantes desportivos ou em qualquer outro sistema de localização gerido por uma federação internacional ou por uma organização antidopagem (cfr. artigo 2.º, alínea ll)).
Por fim, entendem-se como substâncias de uso recreativo as definidas na lista de substâncias e métodos proibidos, cujo consumo ocorre num ambiente social, fora do contexto desportivo (cfr. artigo 2.º, alínea tt)). Os participantes desportivos que consumam, ingiram ou possuam substâncias de uso recreativo estarão sujeitos a um regime sancionatório distinto daquele previsto para o consumo de substâncias de uso não recreativo, conforme se detalhará a propósito da análise do novo regime sancionatório, na Parte II deste artigo.
II. Definição do âmbito de aplicação da lei
Contrariamente ao que sucedia ao abrigo da lei anterior, a Lei n.º 81/2021 define expressamente o seu âmbito de aplicação, clarificando que a mesma se aplica (artigo 3.º):
a) Aos praticantes desportivos, nacionais ou estrangeiros;
b) Aos praticantes desportivos protegidos;
c) Aos praticantes desportivos recreativos;
d) Ao pessoal de apoio do praticante desportivo, como o treinador, dirigente, empresário desportivo, membro da equipa, profissional de saúde, paramédico, pai, mãe, ou qualquer outra pessoa que trabalhe com ou assista um praticante desportivo que participe ou se encontre em preparação para participar numa competição desportiva;
e) A qualquer pessoa que se encontre sujeita à autoridade de uma organização antidopagem no desporto;
f) A qualquer pessoa que participe nos eventos ou competições desportivas;
g) A qualquer pessoa que pratique um ilícito criminal previsto nos artigos 57.º a 60.º da lei;
h) A qualquer pessoa que pratique um ilícito de mera ordenação social previsto nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 62.º da lei.
III. Ampliação das condutas consideradas como violação de normas antidopagem
A nova Lei Antidopagem no Desporto, à semelhança da anterior, não estabelece uma definição de dopagem, adotando antes uma técnica de decomposição de diversos factos e condutas cuja verificação determina a violação de normas antidopagem.
São tipificadas duas novas condutas que passam a ser consideradas como violação de normas antidopagem:
— A ameaça, intimidação ou tentativa de intimidação de uma testemunha ou de qualquer outra pessoa que tenha intenção de denunciar a violação de uma norma antidopagem ou de uma não conformidade com o Código Mundial Antidopagem (cfr. artigo 5.º, n.º 2, al. k));
— O exercício de represálias contra quem tenha fornecido qualquer prova ou informação relacionada com a violação de uma norma antidopagem ou de uma não conformidade com o Código Mundial Antidopagem (cfr. artigo 5.º, n.º 2, al. l)).
Acresce ainda que a presença de uma substância proibida, dos seus metabólitos ou marcadores, numa amostra de um praticante desportivo não constituirá violação de norma antidopagem se estiver previsto, para a substância detetada, um limite de decisão ou limite de quantificação que, no caso, não se encontre ultrapassado (cfr. artigo 5.º, n.º 2, al. a), subalíneas i) e ii)).
IV. Responsabilidade do praticante desportivo e presunções de prova
Uma das mais significativas alterações impostas pela Lei n.º 81/2021 consiste na consagração de um regime de responsabilidade objetiva do praticante desportivo, à semelhança do que sucedia na pretérita Lei n.º 27/2009, de 19 de junho.
Ao abrigo deste regime – que havia já sido ultrapassado pela Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, e agora surge repristinado –, a violação da norma antidopagem pelo praticante desportivo deixa de depender da verificação de prova quanto à concreta culpa do agente, por dolo ou negligência, no que à utilização de substâncias ou métodos proibidos diz respeito (cfr. artigo 8.º, n.º 4). Surge, porém, questionável a razão pela qual o legislador opta por regressar a um regime de responsabilidade de duvidosa conformidade para com a nossa Constituição, da qual resulta inegável aplicação do principio constitucional da culpa a todos os ramos do direito sancionatório.
A este “novo” regime de responsabilidade do praticante desportivo aliam-se ainda novas normas em matéria de prova, que estabelecem uma presunção de validade científica dos métodos analíticos ou dos limites de decisão aprovados pela AMA, a par da presunção já existente na lei anterior de que os laboratórios acreditados pela AMA - Agência para a Modernização Administrativa, I.P. respeitam os procedimentos de segurança estabelecidos pela mesma[3] (cfr. artigo 11.º, n.º 5, da Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro).
V. Alterações ao regime de aplicação de medidas preventivas
No âmbito dos procedimentos de controlo de dopagem, a Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, reforça as garantias dos praticantes desportivos, prevendo-se agora que a medida preventiva de suspensão do praticante desportivo na sequência da receção, pela ADoP, de um resultado analítico adverso ou de um resultado adverso do passaporte biológico, apenas possa ser aplicada após a sua notificação para efeitos de audiência prévia, podendo o praticante desportivo apresentar a sua defesa no prazo de dez dias após essa notificação(cfr. artigo 47.º, n.os 5 e 6).
Esta é uma importante alteração em face do regime anterior, que previa a aplicação da medida preventiva de suspensão sem prévia audição do praticante desportivo, que apenas poderia reagir em momento subsequente.
Nesta matéria, estabelece-se ainda a possibilidade de a suspensão preventiva ser revogada caso o praticante desportivo demonstre indiciariamente que a violação da norma antidopagem está relacionada com uma substância de uso recreativo, prevista na lista de substâncias e métodos proibidos, e, cumulativamente, que o consumo ocorreu fora de competição e não está relacionado com o rendimento desportivo (cfr. artigo 47.º, n.º 10).
Por fim, prevê-se agora a possibilidade de o praticante desportivo aceitar voluntariamente a aplicação da medida de suspensão preventiva nos prazos previstos para o efeito (cfr. artigo 47.º, n.º 14). A vantagem da aceitação voluntária por parte do praticante desportivo está relacionada com a imediata dedução do período de suspensão preventiva ao período correspondente à sanção definitiva que venha a ser aplicada: ao aceitar voluntariamente a aplicação da sanção, o período de suspensão preventiva inicia desde logo a sua contagem, sem que o praticante desportivo tenha de aguardar pela notificação para audiência prévia ou pela notificação da decisão da ADoP a esse respeito (cfr. artigo 47.º, n.º 16 e 17).
Acresce ainda que, na hipótese de estar em causa a aplicação de um período de suspensão igual ou superior a 4 anos, o praticante desportivo que aceite voluntariamente a medida preventiva de suspensão poderá beneficiar de uma redução de 1 ano no período de suspensão (cfr. artigo 83.º, n.º 16).
As alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, entraram em vigor no 15 de dezembro de 2021.
Miguel Santos Almeida | msa@servulo.com
Maria Novo Baptista | mnb@servulo.com
[1] Em Portugal, a primeira lei antidopagem entrou em vigor em 1979[1] (Decreto-Lei n.º 374/79, de 8 de setembro, disponível em https://www.adop.pt/media/8531/DecretoLei%20374_79.pdf).
[2] Conforme frisado pelo Secretário de Estado da Juventude e do Desporto durante o debate na generalidade.
[3] Esta presunção já estava consagrada na lei anterior (cfr. artigo 9.º, n.º 5, da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto).