Please note, your browser is out of date.
For a good browsing experience we recommend using the latest version of Chrome, Firefox, Safari, Opera or Internet Explorer.

Defesa da Concorrência em tempos de inflação?

SÉRVULO PUBLICATIONS 24 Apr 2023

A Autoridade da Concorrência (AdC) emitiu recomendações às empresas ativas na cadeia de valor dos bens de consumo, perante a atual situação inflacionista.

As Recomendações têm uma dupla importância: por um lado para as empresas, porque sofrem hoje pressões fortes, a montante, para não reduzir, manter ou até para aumentar preços[1]; por outro lado, para os clientes e consumidores que, a jusante, pressionam no sentido oposto[2].

Neste contexto, as Recomendações alertam para a importância de as empresas (por exemplo, fornecedores e retalhistas) manterem um respeito estrito pelas normas e boas práticas de concorrência. Ou seja, mantém-se o princípio basilar de que as empresas devem adotar as suas decisões de mercado de modo autónomo e, para tal, não devem partilhar informação estratégica e comercialmente sensível com os seus concorrentes, fornecedores ou até clientes.

Na nomenclatura da AdC, práticas anti-concorrenciais podem acontecer em três contextos principais:

  • Vertical, práticas que ocorrem entre empresas que não são concorrentes e, em particular, atuam em diferentes níveis da cadeia de produção ou de distribuição (ex., entre fornecedores e retalhistas);  
  • Horizontal, em relações entre empresas concorrentes (por ex., o clássico cartel de preços);
  • Híbrido, em situações que têm, simultaneamente, características verticais e horizontais (o chamado hub-and-spoke). 

1. Restrições verticais. A fixação vertical de preços de venda

Fica claro que é lícito que os fabricantes, importadores ou fornecedores indiquem aos seus clientes revendedores (v.g. grossistas ou retalhistas) os preços de venda ao público (PVP) que gostariam que fossem praticados. A prática de preços recomendados (PVPR) não é contrária ao direito da concorrência.

Apesar do teor das Recomendações, o que o direito da Concorrência proíbe é que os fornecedores imponham os preços de venda ao público (PVP) ou que haja um acordopara a sua implementação. Segundo a AdC, tal realiza-se através da imposição de PVP fixo/mínimo, da determinação de intervalos de PVP ou da solicitação de aumento do PVP.

Mas a AdC lista também formas, que qualifica como indiretas, de fixação de PVPs:

  • Fixação da margem de revenda;
  • Concessão de reduções ou o reembolso dos custos promocionais por parte do fornecedor, condicionado à observância, pelo retalhista, de PVPs;
  • Imposição de políticas de preços mínimos (proibindo o retalhista de publicitar preços abaixo de um determinado nível fixado pelo fornecedor);
  • Associação do PVP estabelecido aos PVPs de concorrentes; 
  • Ameaças, intimidações, avisos, sanções, atrasos ou suspensão das entregas ou cessação de contratos, em função do cumprimento de PVPs impostos.

2. Restrições com natureza híbrida (hub-and-spoke)

Recentemente, a AdC tem focado a sua prática sancionatória nas chamadas práticas de hub&spoke. Segundo a AdC, trata-se aqui da utilização de um fornecedor (ou inversamente, de um retalhista) como pivot (o “hub”) para práticas de fixação de preços entre concorrentes (“spokes”). Em suma, estes comportamentos têm caráter híbrido, por existirem elementos simultaneamente verticais e horizontais. O que caracteriza esta infração, para a AdC, são dois elementos essenciais: a combinação de preços (ou outras restrições) entre dois ou mais concorrentes; e a inexistência de qualquer contacto, direto, entre esses concorrentes, que utilizam o “hub".

3. Recomendações da AdC

Ainda assim, apesar do seu viés, as recomendações da AdC são de grande utilidade, reafirmando algumas linhas fundamentais que as empresas não devem perder de vista:

  • O princípio da autonomia e liberdade das empresas de fixarem os seus preços (e outras condições, claro), mesmo quando recebem uma recomendação de PVPs;
  • A ilegalidade de práticas de imposição vertical de preços de revenda (RPM, na terminologia anglo-saxónica);
  • A ilegalidade da troca de informação estratégica e comercialmente sensível entre concorrentes, fora ou mesmo em contextos promocionais;
  • As margens não devem ser garantidas à custa de uma fixação de preços entre empresas;
  • As ferramentas de monitorização não devem ser utilizadas como instrumento de fixação de preços;
  • Ações de pressão, coação e retaliação não devem ser utilizadas como instrumentos de fixação de preços.

4. Análise

Para as empresas, para os consumidores e para a economia, as Recomendações da AdC são muito úteis. Mas, para as primeiras, ainda mais porque fornecem elementos essenciais para a conceção e implementação dos seus programas internos de boas práticas e de compliance.

Contudo, como as trocas de informações em acordos verticais são geralmente pró-competitivas, pode ser difícil destrinçar trocas legítimas de conluio anti-concorrencial. Na prática comercial habitual, os fluxos de informação comercialmente sensível entre um fornecedor e um retalhista são absolutamente indispensáveis para a realização dos seus legítimos objetivos comerciais, e isto para ambos.

No final do dia, quer uns quer outros querem vender mais produtos, prestar mais serviços, faturar mais. A elevada concorrencialidade do mercado implica práticas sistemáticas de redução de preços e de ofertas promocionais favoráveis para os consumidores. Mas para que tal aconteça, é imprescindível que as empresas troquem informações comercialmente sensíveis (por exemplo, sobre os preços de compra de quantidades significativamente maiores, a calendarização da ação, as quantidades de produto necessárias para responder à procura, etc.).

Em nossa opinião, as Recomendações nalguns aspetos são demasiado formalistas e podem ter o condão de “arrefecer” as relações pró-competitivas, normais e duras de negociação entre o fornecedor e o retalhista. Podem, inclusivamente, ter um efeito de redução da concorrência no mercado, com prejuízo para os consumidores. Sobre o ativismo da AdC ao nível do enforcement e as coimas extravagantes aplicadas, em processos hoje em crise judicial, espera-se que aconteça aquilo que vem dito nos fora internacionais, como a OCDE: “os tribunais estabeleceram padrões elevados de prova que têm de ser atingidos, de modo a prevenir a sanção de trocas verticais legítimas e eficientes, ou de agentes que não têm consciência do seu papel no esquema”.

Alberto Saavedra | as@servulo.com



[1] São conhecidas as muitas e variadas razões, a montante, que conduzem à inflação: a guerra na Ucrânia, as dificuldades no funcionamento nas cadeias de valor e a própria inflação que também afeta as matérias-primas, etc.

[2] A inflação tem um impacto brutal no poder de compra das famílias, desde logo quanto aos bens alimentares.

Related Lawyers
Alberto Saavedra