Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de novembro de 2024
SÉRVULO PUBLICATIONS 12 Dec 2024
Relativo às indemnizações a vítimas de crimes violentos, vem estabelecer que a exclusão automática de certos membros familiares da vítima mortal de crime violento não garante “uma indemnização justa e adequada”
No passado dia 7 de novembro de 2024 foi proferido Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) que veio declarar que “[o] artigo 12.º, n.º2, da Diretiva 2004/80/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas da criminalidade, deve ser interpretado no sentido de que: se opõe a uma legislação de um Estado-Membro que prevê um regime de indemnização das vítimas de criminalidade violenta que subordina, em caso de homicídio, o direito à indemnização dos progenitores da vítima à circunstância de esta não ter cônjuge sobrevivo e filhos, e o direito dos irmãos e irmãs da vítima à inexistência dos referidos progenitores.”.
O n.º 2 do artigo 12.º da Diretiva 2004/80/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas da criminalidade (“Diretiva”) estabelece que “[t]odos os Estados-Membros deverão assegurar que a sua legislação nacional preveja a existência de um regime de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respectivos territórios, que garanta uma indemnização justa e adequada das vítimas”.
Em causa estava um litígio entre os pais, a irmã e os filhos de uma vítima mortal de um crime violento e o Estado Italiano, em que os primeiros vinham requerer uma indemnização pelos danos sofridos em consequência desse homicídio, devido à insolvência do autor do mesmo.
O pedido de decisão prejudicial apresentado teve por objeto a interpretação do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva, bem como dos artigos 20.°, 21.°, 33.º , n.° 1, e 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (“CDFUE”), uma vez que o Direito Italiano aplicável, em concreto a Lei n.º 122/2016 (“Lei Italiana”), introduz limitações consideráveis à concessão da indemnização às vítimas de crimes dolosos violentos em violação da Diretiva.
Esta decisão é, no fundo, mais uma vez, a expressão na jurisprudência do TJUE do princípio do primado do Direito da União Europeia (“DUE”), e não deixa de ser curiosa uma vez que, (i) por um lado, reconhece a possibilidade dos Estados-Membros estabelecerem procedimentos destinados a limitar o número de familiares que podem beneficiar dos direitos previstos nesta diretiva, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º da Diretiva 2012/29, mas, simultaneamente, (ii) determina que “um regime nacional de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos não pode, em aplicação da lógica da devolução sucessória, excluir de forma automática certos membros da família do benefício de qualquer indemnização pelo simples facto de existirem outros membros da família, sem que possam ser tidas em conta outras considerações além desta ordem de devolução, como, nomeadamente, as consequências materiais resultantes, para esses membros da família, da morte por homicídio da pessoa em causa ou o facto de os referidos membros estarem a cargo da pessoa falecida ou coabitarem com ela” (destaque nosso).
O TJUE avança ainda que um regime nacional de indemnização que limite, deste modo, o seu âmbito subjetivo não contribui de forma adequada para a reparação dos danos materiais e não materiais causados no contexto deste tipo de crime, pois não tem em conta o sofrimento e a gravidade das consequências do crime para aqueles que ficam excluídos de forma automática por esse regime (neste sentido, cfr. Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri, C?129/19, EU:C:2020:566, n.os 65 e 66).
Esta decisão do TJUE não consubstancia somente a diretriz interpretativa do n.º 2 do artigo 12.º da Diretiva, em abstrato, mas determina que a legislação dos Estados-Membros, onde se inclui a Lei Nacional, devem ser interpretadas em sua conformidade.
Em Portugal esta matéria encontra-se regulada na Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro, na redação dada pela Lei n.º 2/2023, de 16 de janeiro, (“Lei Portuguesa”) que veio estabelecer o regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica. Em concreto, o Capítulo II desta Lei prevê regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos.
Nos termos da Lei Portuguesa, segundo o disposto nos n.os 1, 2 e 4 do seu artigo 2.º, têm direito a esta indemnização, respetivamente, (i) a vítima direta do ato de violência, (ii) no caso de morte da vítima, o cônjuge ou o ex-cônjuge, a pessoa que vivia em união de facto com a vítima, os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os tios, durante a menoridade do alimentando, o padrasto e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste, e (iii) as pessoas que auxiliem voluntariamente a vítima ou colaborem com as autoridades na prevenção da infração, perseguição ou detenção do delinquente, verificados os requisitos constantes das alíneas a) a c) do n.º 1.
Assim, afigura-se pertinente afirmar que a Lei Portuguesa está de acordo com a Diretiva e, em consequência, com a Decisão em análise, uma vez que, ao contrário do que sucede com a Lei Italiana, a sua letra não restringe o direito indemnizatório de nenhum familiar em função da existência de outro, possibilitando dar cumprimento à jurisprudência do TEDH firmada no Acórdão sob análise.
Cláudia Amorim | ca@servulo.com
Joana de Oliveira Rebocho | jor@servulo.com