A promoção de veículos de transporte rodoviário limpos e energeticamente eficientes: o Decreto-Lei n.º 86/2021, de 19 de outubro
SÉRVULO PUBLICATIONS 08 Nov 2021
1. O Decreto-Lei n.º 86/2021, de 19 de outubro, transpõe, para o ordenamento jurídico português, a Diretiva (UE) 2019/1161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, e estabelece medidas de “promoção de veículos de transporte rodoviário limpos a favor da mobilidade com baixo nível de emissões”, pretendendo contribuir para a descarbonização no setor dos transportes. Trata-se de um decreto-lei com conteúdo muito relevante (ainda que, em parte, obscuro), na medida em que impõe (i)critérios ecológicos e determina o cumprimento de objetivos mínimos quanto aos veículos a “contratar”(ii) no âmbito dos contratos abrangidos, (iii) celebrados por entidades adjudicantes à luz do Código dos Contratos Públicos e (iv)cujos procedimentos de formação se iniciem a partir de 02.11.2021.
2. Quanto ao âmbito objetivo de aplicação desse decreto-lei — os tipos contratuais abrangidos —, em causa estão:
a) Contratos de compra e venda, aluguer, locação financeira ou locação-venda de veículos de transporte rodoviário;
b) Contratos de serviço público, tal como definidos no Regulamento (CE) n.º 1370/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, tendo como objeto: a prestação de serviços de transporte rodoviário de passageiros, acima de um valor anual médio estimado em 1 000 000 EUR; ou a prestação anual de, pelo menos, 300 000 quilómetros de serviços públicos de transporte de passageiros; e
c) Contratos de serviço de transporte rodoviário de passageiros com finalidade específica, de transporte não regular de passageiros, de recolha de resíduos, de transporte rodoviário de correio e de transporte de encomendas.
Fora do âmbito de aplicação do decreto-lei estão alguns tipos de veículos indicados no n.º 3 do artigo 5.º e no artigo 4.º, designadamente os tratores agrícolas e florestais, os veículos de lagartas, de duas ou três rodas e os quadriciclos, os veículos com propulsão própria que não se adequam ao transporte de passageiros e de mercadorias, bem como certos veículos da categoria M3, na aceção dos n.os 2 e 3 do artigo 3.º do Regulamento (CE) n.º 661/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009.
3. O âmbito de aplicação temporal do Decreto-Lei n.º 86/2021 está definido por referência aos contratos cujos procedimentos de formação se tenham iniciado após a data de entrada em vigor do Decreto-lei n.º 86/2021, ou seja, a partir de 2 de novembro de 2021.
Tendo em conta que, nos termos do artigo 36.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos, o início do procedimento de formação do contrato se consubstancia na decisão de contratar, pode dizer-se que os procedimentos pré-contratuais (com vista à celebração dos contratos abrangidos, naturalmente) cuja decisão de contratar seja tomada após 2 de novembro de 2021 ficam já abrangidos pelo âmbito de aplicação temporal deste novo decreto-lei.
4. Os objetivos fixados pelo decreto-lei — isto é, o conteúdo prescritivo deste diploma legal — traduzem-se na obrigatoriedade da utilização de uma percentagem mínima de veículos não poluentes no total de veículos afetados à execução dos contratos abrangidos pelo diploma legal em apreço (artigo 6.º). Estes limiares mínimos são de 29,7 % no caso dos veículos ligeiros não poluentes, relativamente a todos os contratos celebrados entre 2 de agosto de 2021 e 31 de dezembro de 2030. Já para os veículos pesados não poluentes, os objetivos são os seguintes: (i) nas categorias N2 e N3, 8 % do número de veículos, de 2 de agosto de 2021 a 31 de dezembro de 2025, e 12 % daquele total, de 1 de janeiro de 2026 a 31 de dezembro de 2030; (ii) na categoria M3, 35 % do número de veículos, de 2 de agosto de 2021 a 31 de dezembro de 2025, e 51 % daquele total, de 1 de janeiro de 2026 a 31 de dezembro de 2030.
Para além destes objetivos, o legislador sugere ainda que, “sempre que viável”, as entidades adjudicantes contemplem, nos procedimentos de formação dos contratos abrangidos pelo Decreto-Lei, um conjunto de critérios ecológicos definidos na Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas ou na legislação europeia: o juízo sobre a viabilidade do recurso a estes critérios permanece assim na discricionariedade das entidades adjudicantes, que, contudo, só em face de uma razão atendível poderão deixar de observá-los.
5. Um ponto – muitíssimo importante - que salta à vista do confronto entre a Diretiva (UE) 2019/1161 e o Decreto-Lei n.º 86/2021 tem que ver com a questão de saber se os objetivos previstos se aplicam ao conjunto dos contratos celebrados em Portugal ou a cada um dos contratos celebrados por cada uma das entidades adjudicantes.
Não há dúvidas que, segundo a Diretiva (UE) 2019/1161, os objetivos nela fixados referem-se à “abrangência pelo conjunto de todos os contratos” de um Estado Membro. Isto mesmo está expresso no n.º 1 do artigo 5.º e no Considerando n.º 19, que claramente se refere a uma posterior repartição dos esforços para cumprir os objetivos mínimos no âmbito do território de cada Estado-membro, “de acordo com o respetivo quadro constitucional e com os seus objetivos em matéria de política de transportes”, podendo ser tidos em conta nessa repartição de esforços “diferentes fatores – como as diferenças em termos de capacidade económica, a qualidade do ar, a densidade populacional, as características dos sistemas de transporte, as políticas em matéria de descarbonização dos transportes e redução da poluição atmosférica – ou quaisquer outros critérios pertinentes”.
Já o legislador nacional parece ter assumido uma opção diferente, estabelecendo que o número de veículos abrangidos “por cada contrato” deve ser tido em conta para efeitos da avaliação do cumprimento dos objetivos mínimos (artigo 6.º, n.ºs 4 e 5, do Decreto-lei). Assim, nos termos do Decreto-Lei n.º 86/2021, e tomando como exemplo o caso dos veículos pesados da categoria M3, o objetivo de 35%, consagrado na Diretiva a nível global, parece surgir como um “limiar individual”, cujo cumprimento é aferido em cada contrato, impondo assim a cada entidade adjudicante o cumprimento, em cada contrato, dessa percentagem mínima. Diferentemente do que decorre da Diretiva, não se assume que se trata de objetivos globais, nem se estabelece, de modo algum, a forma de repartição do cumprimento daqueles limiares entre as entidades adjudicantes, nem sequer se remete, como poderia ter sido feito, para um ato regulamentar a previsão da distribuição do modo de cumprimento da meta global.
Apesar desta (aparente) opção inequívoca, o texto do Decreto-Lei n.º 86/2021 suscita alguma perplexidade, tendo deixado algumas pistas em sentido contrário. É que, de modo isolado e incoerente com o demais conteúdo normativo, manteve-se em algumas passagens a referência à globalidade de todos os contratos: é o caso da referência (i) ao “número total de veículos pesados abrangidos pelos contratos públicos” na alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º e (ii) ao “conjunto de todos os contratos”, na nota de rodapé do Quadro III. Estas passagens, porque precisamente alinhadas com a opção da Diretiva, poderão servir de base a uma tentativa de interpretação deste decreto-lei à luz da Diretiva, no sentido de que afinal também o legislador nacional seguiu a lógica dos objetivos globais.
Mas, se for esta a interpretação, ficaria ainda a faltar, para garantir exequibilidade a este diploma legal, um ato normativo que “reparta os esforços” pelo território nacional, reconhecendo que é desajustado aplicar a mesma quota de veículos não poluentes a contratos a executar em áreas do país com diferenças relevantes e que justifiquem um tratamento diferenciado. Pense-se em contratos a executar em zonas urbanas e a contratos em zonas mais rurais, a contratos em zonas mais povoadas e zonas menos povoadas – a consideração desta realidade diferente levaria a que o legislador ou a administração em ato regulamentar, ponderando todas estas circunstâncias, adaptasse a quota a cumprir em cada região.
Em qualquer caso, mesmo que a intenção legislativa não tenha sido realmente a de seguir a lógica diferenciadora e adaptativa europeia — como nos parece que seria adequado, à luz do princípio da proporcionalidade —, sempre se impõe, pelo menos, uma intervenção legislativa que elimine as passagens obscuras retiram a desejável coerência normativa a este diploma legal.
Ana Luísa Guimarães | alg@servulo.com
Daniel Castro Neves | dcn@servulo.com