A profunda reforma do Arrendamento Urbano III - Alterações ao Novo Regime do Arrendamento Urbano
SÉRVULO PUBLICATIONS 01 Mar 2019
A iniciativa legislativa que recentemente alterou o regime do arrendamento urbano (através das Leis n.º 12/2019 e n.º 13/2019, ambas de 12 de fevereiro), alterou também o Novo Regime do Arrendamento Urbano (“NRAU”). Identificámos, neste último update da série, as novidades mais significativas.
1) Intimação do senhorio contra assédio sofrido pelo arrendatário
A Lei n.º 12/2019, de 12 de fevereiro, vem criar mecanismos preventivos e punitivos de comportamentos ilegítimos que, tendo em vista a desocupação do locado pelo arrendatário, sejam levados a cabo pelo senhorio, por seu representante, ou por “terceiro interessado na aquisição/comercialização do locado”, com o propósito de afetar a sua dignidade, sujeitá-lo a um ambiente hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou que o impeça ou prejudique gravemente o acesso e fruição do imóvel arrendado.
No essencial, é criada uma modalidade de intimação, ao abrigo da qual o arrendatário pode intimar o senhorio para que este tome providências no sentido de i) fazer cessar a produção de ruído ou outros atos suscetíveis de causa prejuízo para a saúde, ii) corrigir deficiências do locado ou das partes comuns do edifício que criem risco grave para a saúde ou para a segurança de pessoas ou bens, e de iii) corrigir “outras situações” que impeçam a fruição do locado ou o acesso a serviços essenciais.
Assim, o regime faz surgir uma modalidade de “responsabilidade objetiva” do senhorio, porquanto passa a recair sobre este a obrigação de fazer cessar atos (também) realizados por terceiros. Caso o senhorio não ponha cobro às situações que motivem a intimação, poder-lhe-á ser exigido o pagamento de uma coima diária de €20 (agravada em 50% quando o arrendatário tenha ≥ 65 anos ou grau de deficiência ≥ 60%).
2) Injunção em matéria de arrendamento (“IMA”)
A Lei nº 13/2019 cria um meio processual que se destina a “efetivar” uma série de direitos do arrendatário. É ainda criado o Serviço de Injunção em Matéria de Arrendamento (“SIMA”), que terá competência nacional para a tramitação dos referidos processo de injunção.
Em causa está, em termos genéricos, a tutela das situações que podem fundamentar a intimação do senhorio pelo arrendatário, referidas no número anterior, designadamente, o pagamento do valor da compensação por execução de obras pelo arrendatário em substituição do senhorio intimado para o efeito ao abrigo do novo regime. Com o decretamento de injunção para i) fazer cessar atividades ou corrigir deficiências causadoras de risco para a saúde, ou para ii) corrigir o impedimento da fruição do locado pelo arrendatário, o senhorio pode sujeitar-se à aplicação de uma sanção diária de €50 (agravada em 50% quando o arrendatário tenha ≥ 65 anos ou grau de deficiência ≥ 60%), caso a injunção seja decretada. Até ao cumprimento da injunção pelo senhorio poderá o arrendatário deduzir, na renda, o valor da sanção aplicada.
3) Título executivo para reembolso de obras
As formalidades para comunicação, pelo arrendatário ao senhorio, da dívida que resulte de obras por aquele realizadas, foram descritas no update II desta série. Essa comunicação, acompanhada do contrato de arrendamento, constitui agora um título executivo para a execução da referida quantia. Tal significa que o arrendatário pode iniciar um procedimento executivo contra o senhorio sem necessidade de obter, previamente, o reconhecimento judicial da exequibilidade da dívida em causa.
4) Transição do arrendamento para o NRAU mais difícil
Ao abrigo do regime anterior, sempre que o arrendatário tivesse ≥ 65 anos ou grau de deficiência ≥ 60%, a transição para o NRAU dependia do acordo das partes, e da observância de uma série de limitações nos valores de renda a praticar (RABC). Ao abrigo do novo regime, a transição para o NRAU passa a estar também sujeita a acordo das partes e limitações nos valores de renda para as situações em que o arrendatário comprovar que, i) além de si, reside no locado, há mais de cinco anos, o seu cônjuge, unido de facto, pai, mãe ou filho com ≥ 65 anos ou grau de deficiência ≥ 60%, e ii) o rendimento anual bruto corrigido do agregado familiar (“RABC”) seja inferior, em 2019, a €42.000,00 (ou seja, 5x a Retribuição Mínima Nacional Anual, “RMNA”).Desta forma, é estendida a impossibilidade de transitar unilateralmente para o NRAU a situações contratuais em que, não o arrendatário, mas pessoas do seu agregado familiar que com ele normalmente habitem com mais de 65 anos ou deficiência superior a 60% e que, em conjunto com estas, o RABC não ultrapasse os valores supra indicados.
5) Mais limitações no caso dos arrendamentos habitacionais
A nova lei estabelece que, caso o arrendatário não tenha invocado a insuficiência económica indicada supra, resida no locado há mais de 15 anos, e tenha, na data de transição do contrato de arrendamento para o NRAU, idade igual superior a 65 anos ou deficiência igual ou superior a 60%, o senhorio apenas se poderá opor à renovação do arrendamento nas situações de demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação, e já não nos termos gerais do direito de denuncia (i.e. 240 dias antes do final do prazo), habitação própria ou denuncia com 5 anos de antecedência. Pode sim, proceder a uma atualização extraordinária de renda, até ao limite previsto anteriormente (em função de se o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA), e sem que a mesma ultrapasse anualmente 20% do valor da diferença entre 1/15 do valor patrimonial tributário a renda anteriormente paga pelo arrendatário. A novidade é que, findo o período de salvaguarda (10 anos) ou realizado o aumento extraordinário de renda, o arrendatário passa a ter direito a um subsidio de renda.
6) Sucessão no arrendamento – filho ou enteado com ≥ 65 anos ou grau de deficiência ≥ 60%
O atual regime prevê também que poderá suceder no arrendamento o filho ou enteado do arrendatário original com ≥ 65 anos, desde que i) este viva com aquele há mais cinco anos e ii) o RABC do agregado familiar seja inferior a 5x RMNA.Avaliando globalmente a reforma levada a cabo pelas Leis n.º 12/2019 e n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, é de lamentar que os resultados pretendidos, que visam, no essencial, corrigir situações de injustiça social, através do aumento do desequilíbrio de direito e garantias das partes na relação arrendatícia, não contemplem a necessária fluidez que permita atrair mais proprietários para os arrendamentos de longa duração, mantendo-se a incontornável carência de casas para arrendar, e com ela a elevada especulação da pouca oferta existente. Conhecida a complexidade e o elevado potencial de conflitualidade do arrendamento urbano, o seu regime jurídico merecia, ao invés, uma reforma global e estruturada, que permitisse aos intervenientes ganhar confiança no negócio jurídico, tornando-o seguro e equilibrado para ambas as Partes. Em nosso entender, esta revisão terá sérios efeitos práticos no mercado imobiliário, e tornará ainda maior o défice da solução de arrendamento como alternativa de excelência para os enormes problemas de acesso à habitação existentes.
Carla Parreira Leandro
Afonso Scarpa