A criminalização de maus-tratos a animais: inconstitucional ou não inconstitucional?
SÉRVULO PUBLICATIONS 23 Apr 2024
Em recente acórdão, decidiu o Tribunal Constitucional pela (i) não inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação original, bem como pela (ii) não inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no artigo 387.º, n.º 3, do CP, na sua atual redação.
Muito embora não tenha sido imune aos votos de vencido de sete Juízes Conselheiros dos doze que compõem o Plenário, a presente decisão vem pôr termo à querela que surgiu em torno das normas que, em 2014 e 2020, vieram tipificar o crime de maus-tratos a animais de companhia.
Assim, contrariando o que havia sido decidido em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade , o TC vem, ao abrigo do mecanismo previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, apreciar dois pedidos de generalização de juízos de inconstitucionalidade proferidos pelo mesmo Tribunal em mais de três casos concretos relativamente às normas supracitadas.
Os artigos 387.º e 389.º do CP – este último convocado pelo TC, na sua apreciação, na medida em que densifica o conceito de animal de companhia – foram introduzidos pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, com vista à criminalização dos maus-tratos a animais de companhia.
A letra original do artigo 387.º do CP previa um crime de maus-tratos a animais de companhia, cuja moldura penal poderia ver-se agravada caso da conduta prevista no n.º 1 resultasse “a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção”.
Posteriormente, a Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, veio alterar estes artigos.
Em primeiro lugar, tipificou-se, de forma autónoma, a morte de animal de companhia. Assim, o resultado “morte de animal” (i) manteve-se, relativamente ao crime de maus-tratos a animais de companhia, como elemento agravante da moldura penal prevista para o crime fundamental, (ii) passando também a configurar, per si, uma conduta autonomamente criminalizada pelo CP português.
Por outro lado, o diploma fixou limites mínimos às molduras penas anteriormente previstas. Consequentemente, o limite mínimo da moldura penal a aplicar, em ambos os casos, deixou de ser o previsto nos artigos 41.º e 47.º do CP (1 mês para as penas de prisão e 10 dias para as penas de multa), para passar a ser 6 meses e 60 dias para as penas de prisão e multa, respetivamente.
Ora, a inconstitucionalidade da norma incriminadora contida no artigo 387.º do CP, em ambas as redações, discutiu-se por referência a dois grandes pontos temáticos: um relativo à identificação de um bem jurídico com dignidade constitucional que justifique a incriminação; outro relacionado com a exigência de determinabilidade do tipo legal.
No que ao bem jurídico diz respeito, perante as várias posições em debate, a verdadeira cisão verificou-se entre os que entendem que inexiste um bem jurídico com dignidade constitucional que suporte a incriminação e os que, pelo contrário, entendem que existe. Dividindo-se estes últimos entre aqueles que o encontram no artigo 1.º e aqueles que o retiram do artigo 66.º, da Constituição.
Assim, compreendendo a Constituição sob um ponto de vista material, o Plenário do TC entendeu que seria um equívoco “reduzir os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos aos enunciados no texto constitucional”.
Desta forma, uma vez que “a dignidade da pessoa humana opera não apenas como um princípio de ordem na relação do indivíduo com as outras pessoas, mas também como um princípio de ordem na relação da pessoa humana com os demais seres sencientes”, é na natureza qualificada do bem-estar dos animais de companhia, relativamente ao qual o ser humano terá uma responsabilidade acrescida, que a norma incriminadora consagrada no artigo 387.º do CP encontra fundamento constitucional.
Em relação à determinabilidade do tipo legal, a questão coloca-se no plano da conformidade da norma com o princípio da legalidade criminal – ou seja, na exigência de lei certa e determinada.
Sucintamente, à norma incriminadora contida no artigo 387.º do CP apontava-se a falta de determinabilidade tanto da ação típica (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos”) quanto do objeto da ação (“animal de companhia”, definido como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos”).
A este respeito, o TC entendeu que, ressalvadas as óbvias diferenças entre humanos e animais com suscetibilidade de experimentar sofrimento, “o artigo 387.º do CP parece prever apenas expressamente os maus ratos físicos”, sendo que, “também aqui, a noção de «maus-tratos», em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode ir factualmente implicado”.
Pelo que, em suma, estaremos perante um conceito indeterminado, mas determinável, e, por isso, compatível com o princípio da legalidade criminal.
Do mesmo modo, para a aferição do objeto da ação, o Acórdão serve-se e articula o conceito de “animal de companhia” com vários diplomas infraconstitucionais. Acrescentando, ainda, que “dúvidas interpretativas sobre os limites da conduta penalmente relevantes podem existir em qualquer crime, sem que a previsão típica passe a ter-se como indeterminada, por esse motivo” e que estas se resolvem interpretando o direito infraconstitucional.
O Plenário do TC conclui, então, pela não inconstitucionalidade do artigo 387.º, em ambas as redações, na medida em que considera que (i) não há lugar a um juízo de censura relativamente à norma incriminatória por falta de legitimação constitucional da incriminação, nem tão-pouco (ii) existe fundamento para afirmar a indeterminabilidade da norma que tipifica o crime de maus-tratos de animal de companhia.
Cláudia Amorim | ca@servulo.com
Sara Venâncio Gaspar | svg@servulo.com
[1] Cfr. Acórdãos n.º 867/2021, 781/2022 e Decisões Sumárias n.º 344/2022, 772/2022, 786/2022 e 14/2023.